
An English summary of this report is below. The original report, published in Portuguese in AzMina, follows.
The search for “perfect” bodies is deeply linked to social, cultural, and economic pressure, with many Brazilian women turning to anabolic steroids and hormonal therapies such as “beauty chips."
The use of substances like gestrinone poses serious risks, including infertility, hormonal damage, cancer, and pregnancy complications. Medical organizations warn of the dangers and stress the need for more research and regulation.

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Os riscos por trás da busca por um corpo ideal e que não envelhece
Questões sociais também explicam porque mulheres têm buscado tanto o uso de esteroides anabolizantes (o tal chip da beleza) no Brasil
- A busca por corpos “perfeitos” está profundamente ligada à pressão social, cultural e econômica, com mulheres se submetendo ao uso de esteroides anabolizantes e terapias hormonais, como os “chips da beleza”;
- O uso de substâncias como a gestrinona apresenta riscos sérios, como infertilidade, danos hormonais, câncer e complicações durante a gravidez. Esses tratamentos não têm comprovação científica segura;
- A popularidade dos “chips da beleza” é impulsionada por médicos nas redes sociais, muitos sem a formação adequada. A Anvisa e entidades médicas alertam sobre os perigos e destacam a necessidade de mais pesquisas e regulação.
O que leva as pessoas a arriscarem a própria saúde para ter um corpo que consideram o ideal? Não é só uma questão estética, também envolve aspectos culturais, políticos, econômicos, sociais, de ascensão e permanência. “No Brasil há uma percepção muito específica sobre a beleza”, afirma Camila Cavalheiro, antropóloga social que pesquisa o uso da gestrinona (esteroide anabolizante usado nos implantes hormonais) por mulheres.
A dimensão social do aprimoramento do corpo é fundamental para entender o fenômeno no Brasil. “É uma ideia que se coaduna com a lógica neoliberal, há um investimento alto, a pessoa quer mostrar como foi capaz de fazer de si a sua melhor versão — frase que, aliás, se usa muito hoje”, explica a doutora em antropologia social Fabiola Rohden, que orientou Camila no mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Em uma sociedade na qual a ‘cidadania’ costuma se caracterizar mais pelo consumo do que pelos direitos, “essa pessoa teve recursos, tempo e informação para uma transformação corporal”, pontua Fabíola, que é integrante do Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (Nupacs) e desenvolve estudos sobre transformações corporais e história da medicina.
A essa tentativa de buscar um aprimoramento do corpo a qualquer custo também se incorpora o horror ao processo do envelhecimento. “É um corpo sem falhas, que não se permite caracterizar pelas fases normais da vida”, destaca a antropóloga. Não há problemas em discutir como envelhecer melhor, com qualidade de vida, se cuidando, mas, indica Fabíola, esse desejo não deveria trazer riscos à própria saúde.
Qualquer semelhança com o filme “A Substância”, estrelado com Demi Moore, não é mera coincidência. No filme, a atriz interpreta uma apresentadora de TV que, depois de ser descartada por estar “velha demais”, aceita usar um elixir que faz uma versão melhorada dela surgir de dentro de suas costas. A tal substância, claro, gera consequências nefastas.
ANTÍDOTO CONTRA O ENVELHECIMENTO
Não à toa, as “terapias hormonais” se consolidam nas redes sociais como um “antídoto” contra o envelhecimento. É fundamental destacar que não se trata de reposição hormonal para atenuar efeitos da queda de estrogênio que caracteriza a menopausa — tratamento com benefício comprovado pela ciência para a saúde da mulher.
As “terapias hormonais” são implantes produzidos por farmácias de manipulação que, diferente de medicamentos produzidos pela indústria farmacêutica, não foram testados em ensaios clínicos de fase 1, 2 e 3, essenciais para que um remédio seja aprovado por qualquer agência reguladora, seja a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ou o FDA (Food and Drug Administration), órgão responsável por regular os medicamentos nos Estados Unido.

O problema é tão sério que 16 entidades científicas e médicas brasileiras pediram à Anvisa, em agosto do ano passado, a proibição da fabricação, importação, manipulação, comercialização, distribuição, armazenamento, transporte e propaganda de medicamentos com ação hormonal em tipos farmacológicos, combinações, doses ou vias não registradas na agência.
Entre as entidades que assinaram o documento estão a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem), a Associação Brasileira para Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso) e a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).
A ginecologista Natália Tavares Gomes, que atua na área da saúde da mulher no esporte, prefere não se referir a esses implantes como chips da beleza, nomenclatura que os associa a um suposto benefício, apagando as consequências negativas à saúde de quem usa. “Não gosto desse nome que foi popularizado. Esse tipo de implante se refere à gestrinona, derivado sintético que é uma progesterona com efeito anabólico, embora tenha efeito menor do que a testosterona, ela influencia na massa muscular”, esclarece.
CONTRACEPÇÃO E ENDOMETRIOSE
Patenteada nos anos 1960, a gestrinona começou a ser usada como contraceptivo, inclusive na versão implante. Quando foram observados efeitos deletérios à saúde das mulheres participantes, especialmente os virilizantes, os testes clínicos foram cancelados pelo Population Council, em 1969, como lembra a antropóloga Camila Cavalheiro.
Criado nos EUA, o Population Council era um esforço internacional de desenvolvimento de contraceptivos, que ajudou na elaboração de várias tecnologias, algumas ainda em uso. A gestrinona, no entanto, foi abandonada. “Especificamente por duas razões: os efeitos colaterais, os virilizantes e os que indicaram algum tipo de dano hepático. A segunda, foram os altos custos para realização da fase 3 de testes clínicos”, relata Camila.
Na década de 80 até o início dos anos 2000, a gestrinona ainda foi usada para tratar a endometriose, que, naquele momento, era entendida como uma doença estrogênica dependente. “É quando ela passa a ser comercializada como um medicamento, inclusive no Brasil, com registro e bula, até ser suspensa pelos laboratórios em 2012”, conta Camila.
A ginecologista Natália explica que a gestrinona via oral prescrita para endometriose deixou de ser usada porque existem inúmeros outros medicamentos melhores e com menor efeito colateral. “Essas medicações, especialmente derivadas da testosterona, podem gerar alterações na menstruação e até a bloquear. Algumas mulheres que fazem uso de ciclos de testosterona, muitas vezes, param de menstruar porque bloqueiam o eixo hipotálamo-hipófise-ovários, áreas responsáveis pelo funcionamento do ciclo menstrual”, detalha Natália.
INFERTILIDADE E CÂNCER
Mulheres recorrem a terapias hormonais buscando um corpo padrão ou para esconder as marcas do envelhecimento, mas será que isso justifica os riscos e efeitos colaterais indesejados?
O bloqueio no sistema nervoso central faz com que os ovários deixem de produzir hormônios e a mulher pode parar de ovular. O uso de esteroides anabolizantes pode impactar negativamente na fertilidade e até causar infertilidade na mulher, e também no homem. “É muito problemático reverter esse bloqueio, muitas vezes, demora. Não é só a suspensão do uso”, afirma a ginecologista.
Outro ponto importante é que o bloqueio do ciclo menstrual não garante o bloqueio da ovulação. E, se a mulher engravida durante o uso, pode ocorrer uma virilização do feto feminino. “Há repercussão também para a gestação, com aumento de vários riscos, tanto para a mãe quanto para o feto.”
As sociedades de mastologia, brasileira e internacional não veem segurança no uso de substâncias androgênicas, alerta Natália, embora não haja estudos robustos demonstrando a correlação de aumento do risco de câncer de mama e o uso de testosterona.
A ginecologista e outros pesquisadores estão recrutando em 2025 pacientes para fazer um estudo sobre o uso da gestrinona por mulheres, dentro do hospital Albert Einstein, em São Paulo. “Faltam pesquisas e precisamos entender melhor o funcionamento dessa droga, até para compreender benefícios e riscos”, explica Natália.
NOVAS REGRAS DA ANVISA
Em outubro do ano passado, a Anvisa proibiu a manipulação, comercialização, propaganda e uso de implantes hormonais manipulados, do qual fazem parte os “chips da beleza”. Na época, a agência afirmou que a medida tinha sido adotada após denúncias das entidades médicas. O assunto chegou até o Senado Federal, em uma sessão presidida pelo senador Jorge Seif (PL-SC), na qual médicos se posicionaram contra e a favor. Na ocasião, a posição do Conselho Federal de Medicina (CFM) foi pela defesa da autonomia do médico, mesmo argumento usado na pandemia para os profissionais que receitaram ivermectina aos pacientes com Covid-19.
Já a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem) ressaltou que a resolução era um passo na proteção da saúde pública, pois não aprova o uso de implantes hormonais nem diz que eles são seguros. Logo depois, em 26 de novembro, a Anvisa publicou novas regras para o uso, entre elas, a receita de controle especial, que deve ser registrada pelas farmácias no Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC).
A reportagem pediu à Anvisa acesso a esses registros, mas atualmente eles não estão sendo feitos. “A inclusão obrigatória de dados por parte das farmácias no sistema SNGPC será retomada em breve, após um período de interrupção para ações corretivas e evolutivas no sistema e um período de testes, encerrado em 31/12/24″, respondeu, por email, em 3 de fevereiro, a assessoria de imprensa da Anvisa.
Além desse registro, a resolução exige a inclusão do CID na receita, ou seja, a indicação de qual doença está sendo tratada, e que um termo de responsabilidade, com os riscos e possíveis efeitos colaterais, acompanhe a prescrição médica. Ainda pela nova regra, qualquer efeito colateral passa a ser de notificação compulsória.
INFLUENCIADORES DO “CHIP DA BELEZA”
A popularidade dos implantes hormonais segue em alta, impulsionada inclusive por médicos com milhares de seguidores nas redes sociais. Embora muitos se declarem “especialistas em hormônios”, nem sempre eles são endocrinologistas. Para se tornar um, é necessário, após a faculdade, fazer duas residências, em clínica geral e em endocrinologia, cada uma de dois anos, e só então a prova que outorga o título. Para saber se o profissional é ou não endocrinologista, basta pesquisar nos sites do CFM ou nos conselhos regionais de medicina (CRMs).
“O grande problema são os cursinhos de formação que duram um fim de semana. Em dois ou três dias, a pessoa se torna especialista, um ‘profissional premium’, ao custo de menos de um cafezinho por dia”, critica o endocrinologista Clayton Macedo. Ele continua: “O que eles ensinam é dar um control C, control V, uma receita que vale para todos os pacientes.”
Durante a apuração desta reportagem, recebi mensagem direta do consultório de uma médica, “especialista em implantes hormonais”, apenas porque a segui no Instagram — ela também passou, imediatamente, a me seguir.
Contas em redes sociais com muitos seguidores, posts esteticamente muito bem elaborados, fotos dos médicos ao lado de famosos e consultórios suntuosos são denominadores comuns entre esses prescritores de implantes. E os cursos online multiplicam esses “especialistas”, espalhando-os por todo o Brasil, não se restringindo mais às grandes cidades.
ALERTAS NO CARNAVAL
Se no TikTok e no Instagram os chips hormonais seguem conquistando mais adeptos com um discurso positivo e quase nenhuma menção aos seus graves efeitos colaterais, alguns sites de notícias começaram a trazer alertas.
Em uma matéria do GShow sobre os preparativos para o Carnaval deste ano, a atriz Viviane Araujo, bastante conhecida também por seu posto de rainha de bateria da escola de samba Salgueiro, revelou seus segredos da boa forma: “Tenho acompanhamento com nutricionista, médico ortomolecular, que faz minha suplementação, e aderi ao chip hormonal, que me dá um gás a mais …” Logo abaixo da resposta de Viviane foi publicado o seguinte texto: “A Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem) não recomenda o uso de implantes para tratamento estéticos e de desempenho físico. Em dezembro de 2023, sete sociedades médicas enviaram uma carta à Anvisa expressando preocupação com a crescente utilização indevida de implantes hormonais no Brasil“.
É justamente nesse contexto dos desfiles de Carnaval que o corpo sarado e “sem defeitos” são validados e se tornam tendência, uma moda a ser reproduzida por todas que almejam fama e fortuna.
Para a antropóloga e pesquisadora Camila Cavalheiro, os implantes hormonais são um problema eminentemente brasileiro e, para combatê-lo, é preciso se aprofundar nessa dinâmica. “Podemos pensar: ‘Meu Deus, essa mulher está prejudicando a saúde cardíaca para poder desfilar no Carnaval uma vez no ano’. Mas tem muita gente disposta, porque vai abrir muitas portas, porque isso pode ser a oportunidade de ganhar 1 milhão de seguidores”.
A questão, afirma Camila, vai além da construção de uma legislação ou de políticas públicas de proteção à saúde e de incentivo a outras práticas. “A narrativa construída (da beleza) tem adesão por alguma razão. Uma legislação não vai ser o suficiente para barrar isso.”
*Este conteúdo foi produzido como parte de um programa de combate à desinformação em ciência. Também fazem parte desse projeto o podcast Ciência Suja, Veja Saúde, Núcleo Jornalismo e Olá, Ciência.