An English summary of this report is below. The original report, published in Portuguese in Folha de S.Paulo, follows.
Episode 2: Narenda Modi and Hindu Nationalism
Podcast explains Hindu nationalism under a prime minister accused of turning a blind eye to crimes against minorities.
A man lynched on suspicion of slaughtering a cow. A Hindu extremist who monitors Muslims. A young Muslim woman who ran away from home to escape religious violence. Get to know these stories and understand how Hindu nationalism has advanced in India under Prime Minister Narendra Modi, accused of undermining democracy in the country.
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Autoritários: como Modi e seu partido alimentaram a rejeição a muçulmanos na Índia
Podcast explica o nacionalismo hindu sob o primeiro-ministro, acusado de fechar os olhos para crimes contra minorias.
SÃO PAULO—No nordeste de Nova Déli, capital indiana, existe um gueto chamado Shiv Vihar. As ruas são estreitas, de terra batida. Os postes têm um emaranhado de fios elétricos aparentes. As casas são simples, de tijolo ou alvenaria, coladas umas às outras. No chão, há muito lixo espalhado e algumas valas com água suja acumulada. A cada passo que se dá, os pés levantam uma nuvem de moscas.
Foi ali o epicentro do pior caso de violência entre hindus e muçulmanos da última década. Por quatro dias, em fevereiro de 2020, se desenrolou uma série de espancamentos, torturas, esfaqueamentos, incêndios criminosos e destruição de casas. Cinquenta e três pessoas morreram, sendo 40 muçulmanos.
"Eles começaram a arrastar as barras de ferro nas ruas e a bater nos portões das casas", lembra a muçulmana Sabeena Malik, moradora de Shiv Vihar. "A gente ficou com medo e trancou os portões por dentro. Mas não dormimos a noite toda."
O segundo episódio do podcast Autoritários conta as histórias de muçulmanos vítimas do extremismo hindu e explica como o primeiro-ministro Narendra Modi se tornou tão popular na Índia. Também mostra de que formas o governo tem tentado censurar a imprensa e a oposição.
Apesar de a Índia em teoria ser um estado secular, os hindus vem ganhando mais influência política desde 2014. Esse foi o ano em que o BJP chegou ao poder, liderado por Modi.
O BJP é o maior partido indiano, alinhado à direita, e tem como ideologia central o nacionalismo hindu. O governo Modi é acusado de fechar os olhos para os crimes contra os muçulmanos e de promover leis que aprofundam a rejeição contra eles. A administração também é criticada por perseguir jornalistas, ativistas e opositores.
Desde que Modi virou primeiro-ministro, a Índia vem caindo nos índices que medem a qualidade das democracias, como os do instituto V-Dem e da Freedom House. Hoje o V-Dem considera o país uma autocracia eleitoral. Ou seja, há eleições, mas a liberdade de expressão e de associação estão sob ataque.
A série narrativa em áudio da Folha conta em sete episódios o processo de crise democrática que está em curso no mundo. Cada um deles se debruça sobre um líder autoritário contemporâneo: Narendra Modi (Índia), Viktor Orbán (Hungria), Donald Trump (Estados Unidos), Jair Bolsonaro (Brasil), Nayib Bukele (El Salvador) e Daniel Ortega (Nicarágua).
Foram oito meses de pesquisa, seis viagens e dezenas de entrevistas com políticos, pesquisadores, jornalistas, ativistas e, principalmente, cidadãos que têm suas vidas afetadas diretamente pelo autoritarismo.
Apresentação, roteiro, produção e reportagem do Autoritários foram feitos pela repórter Ana Luiza Albuquerque. Há oito anos na Folha, Ana Luiza trabalha na editoria de política e é mestre em jornalismo político pela Universidade Columbia (EUA).
A edição de som do projeto é de Raphael Concli. A coordenação é de Magê Flores e Daniel Castro, a produção no roteiro é de Victor Lacombe e a supervisão é de Gustavo Simon. A identidade visual é de Catarina Pignato.
Os episódios são publicados toda semana, às quintas-feiras. Eles podem ser ouvidos no site da Folha e nas principais plataformas de áudio.
LEIA A TRANSCRIÇÃO DO SEGUNDO EPISÓDIO
NARENDRA MODI E O NACIONALISMO HINDU
Ana Luiza Albuquerque: Eu nunca vi nada mais caótico que o trânsito de Nova Déli. E olha que eu venho do Rio de Janeiro. As avenidas da capital indiana são largas, mas ainda assim parece que não cabe todo mundo. É que é muita gente mesmo: a Índia tem quase 1 bilhão e meio de habitantes. É o país mais populoso do mundo, segundo as projeções da ONU. Daí rola uma disputa constante… É carro, ônibus, moto, bicicleta. E um monte de tuk tuks, aqueles triciclos motorizados muito comuns na Ásia. Nem o rádio consegue abafar a sinfonia das buzinas do lado de fora.
[Anisha Dutta] What is happening that I’m missing?
Ana Luiza Albuquerque:Essa aí é a Anisha Dutta, uma jornalista indiana que costuma dar uns furos de reportagem que incomodam o governo. A gente se conheceu no mestrado e ela me ajudou a produzir as entrevistas para esse episódio. A Anisha também ficou com a tarefa ingrata de dirigir o carro. Você vai ouvir falar dela de novo.
Ao contrário da Anisha, tem quem fique de boa na confusão do trânsito. As vacas. Elas estão em todo lugar. Paradas na esquina, caminhando ao lado dos carros, atravessando as estradas.
Ninguém se atreve a mexer com elas. Os hindus, maioria religiosa que soma 80% da população indiana, consideram as vacas um animal sagrado. Elas representam a vida e a abundância, e por isso são protegidas e veneradas.
Apesar de a Índia em teoria ser um estado secular, os hindus vem ganhando mais influência política desde 2014. Esse foi o ano em que o BJP chegou ao poder, liderado pelo primeiro-ministro Narendra Modi. O BJP é o maior partido indiano, alinhado à direita.
[reportagem TV Cultura] Na Índia, a maior democracia do mundo, o novo primeiro-ministro eleito é um ex-vendedor de chá. Narendra Modi, candidato da oposição, teve a maior vitória eleitoral que o país já viu nos últimos 30 anos.
Ana Luiza Albuquerque: Essa espécie de devoção às vacas, que eu citei agora há pouco, tem consequências práticas. Umas são banais, tipo a dificuldade de achar um hambúrguer de carne bovina na Índia. Outras, são gravíssimas. Extremistas hindus torturam, lincham e matam pessoas suspeitas de abater as vacas. Em geral, essas pessoas fazem parte da minoria muçulmana do país, para quem as vacas não são sagradas.
A ideologia central do BJP é o nacionalismo hindu. O governo do Modi é acusado de fechar os olhos para os crimes contra os muçulmanos. E de promover leis que aprofundam a rejeição contra eles. O governo também é criticado por perseguir jornalistas, ativistas e opositores.
[reportagem AFP] Mais de 20 estudantes da Universidade de Nova Déli foram detidos nesta sexta-feira pela polícia indiana, que também apreendeu computadores e proibiu reuniões de mais de 4 pessoas no campus. Os jovens desafiaram a decisão das autoridades universitárias de proibir a divulgação de um documentário da BBC, cujo acesso nas redes sociais também foi bloqueado pelo governo indiano.
Ana Luiza Albuquerque: Há dez anos no poder, Modi agora tenta mais uma vez a reeleição. Entre abril e maio desse ano, os indianos vão decidir se assinam embaixo das políticas do governo.
Ana Luiza Albuquerque: Eu sou Ana Luiza Albuquerque e esse é o segundo episódio do Autoritários: um podcast da Folha que investiga líderes contemporâneos que ameaçam a democracia e as conexões entre eles. O projeto tem apoio do Pulitzer Center on Crisis Reporting.
Ana Luiza Albuquerque: Era noite do dia 28 de setembro de 2015. Jaan Mohammad Saifi estava em casa, na cidade de Dadri, a uns 40 km da capital Nova Déi. Ele estava com febre, deitado na cama. Até que recebeu uma ligação.
Jaan Mohammad Saifi (dublado): Uma pessoa da vila me ligou, dizendo que meu irmão tinha se envolvido em uma briga. Então eu liguei para a casa dele, mas ninguém atendeu. Aí outro vizinho me ligou e disse que não tinha sido uma briga. Ele falou que meu irmão tinha sido atacado. Daí ele disse: O Akhlaq morreu.
Ana Luiza Albuquerque: Mohammad Akhlaq, o irmão do Saifi, tinha 50 anos e morava numa vila chamada Bishahra. Ela fica a uns 4 km da casa do Saifi. Nessa vila também moravam o filho e a mãe do Akhlaq. E bem perto da casa deles tinha um templo hindu.
Por volta das 9 da noite daquele dia, o sacerdote desse templo pegou o microfone para fazer um anúncio. Ele disse que tinha ficado sabendo que alguém tinha abatido uma vaca. E que alguns pedaços do bicho estavam perto de um transformador elétrico da vila.
As investigações da morte do Akhlaq apontaram que o sacerdote foi pressionado por jovens da comunidade a fazer esse anúncio. Eles queriam incitar os vizinhos contra a família do Akhlaq. E conseguiram.
Os rumores se espalharam. Uma multidão se reuniu e as pessoas começaram a debater quem tinha sido responsável pela morte da vaca. Só tinha uma família muçulmana na vila, então a resposta não demorou muito.
Jaan Mohammad Saifi (dublado): Eles não perguntaram para ninguém. Eles decidiram: vamos pegar o Akhlaq.
Ana Luiza Albuquerque: Às 10h30, mais de 15 homens foram até a casa dele. Eles carregavam paus, espadas e facas. Quando eles chegaram, o Akhlaq estava dormindo. Ele estava deitado ao lado do filho, o Dinesh, que na época tinha 22 anos.
Os extremistas arrombaram a porta e destruíram tudo. Eles gritavam e acusavam a família do Akhlaq de ter matado a vaca. Eles bateram na mãe dele, de 75 anos, e espancaram brutalmente o filho dele. Tanto que os homens acharam que o Dinesh tinha morrido. Por isso ele foi deixado ali, estirado no chão. E o que fizeram com o Akhlaq foi ainda pior.
Jaan Mohammad Saifi (dublado): Depois de bater no Akhlaq, arrastaram ele como um animal. Arrastaram por todo o caminho até o transformador. E depois espancaram ele com tijolos. Qualquer vara ou tijolo que eles tinham, eles usaram para bater nele.
Ana Luiza Albuquerque: Esse é o som de um vídeo que o Saifi me mostrou. O Akhlaq aparece desacordado, deitado de lado em um chão de terra batida. A cabeça dele está ensanguentada. Perto da perna tem um tijolo cinza com marcas de sangue. Em volta do Akhlaq, um grupo de homens fala em voz alta. Um deles diz, em hindi: faz um vídeo desse babaca.
Depois do linchamento alguém chamou a polícia. O Akhlaq foi levado ao hospital, mas já não tinha o que fazer. O filho dele, Dinesh, chegou em estado crítico. Desde 2015, o Dinesh passou por uma série de cirurgias, e hoje ele está bem.
Além do Akhlaq, ao menos 43 pessoas foram assassinadas entre 2015 e 2018 por supostamente terem matado uma vaca, de acordo com a organização Human Rights Watch. 36 delas eram muçulmanas. Outras 280 pessoas ficaram feridas em ataques com essa mesma motivação.
Oito anos depois da morte do Akhlaq, o processo judicial ainda está em curso e ninguém foi condenado. Dezoito acusados do crime chegaram a ser presos. Mas dois anos depois do assassinato todos já tinham pagado fiança e estavam em liberdade.
A imprensa indiana noticiou que um deles é filho de um homem que trabalhava para o partido do Narendra Modi, o BJP. Inclusive, ele e outros acusados no caso foram vistos sentados na primeira fileira de um comício do BJP, em 2019.
O partido do Modi foi criticado pela reação, ou pela falta dela, diante do assassinato. Um parlamentar chegou a dizer que o caso foi um pequeno incidente. O próprio Modi demorou duas semanas para se manifestar. Ele disse apenas que os hindus e os muçulmanos deveriam lutar contra a pobreza, e não uns contra os outros. Depois, ele falou que o linchamento foi triste e indesejável. Mas não condenou os autores.
Desde que os acusados foram soltos, o Saifi vive com medo. Ele diz que os homens saíram da prisão ainda mais violentos. Logo depois do assassinato, os parentes do Akhlaq tiveram que deixar a vila. Quatro gerações da família tinham vivido lá. Mas não tinha mais como continuar.
Jaan Mohammad Saifi (dublado): Eu nunca imaginei que algo assim pudesse acontecer. A confiança que a gente tinha por anos se destruiu de uma hora para a outra. A gente era tão conectado que deixava nossos filhos na casa dos vizinhos. E eles deixavam os filhos deles na nossa, se tivessem que sair para algum lugar.
Ana Luiza Albuquerque: Isso foi algo que eu ouvi de outros muçulmanos vítimas do extremismo hindu. Eles dizem que não tinham problemas com os vizinhos, até o momento em que tudo mudou. Assim, meio que da noite para o dia.
Eles não perceberam o ressentimento se acumulando, pouco a pouco.
Ana Luiza Albuquerque: O BJP, Bharatiya Janata Party, existe formalmente como partido desde 1980. A ideologia fundamental dele é a Hindutva, a crença na supremacia hindu. Sabe o nacionalismo cristão que cresceu no Brasil no governo Bolsonaro? Então, é mais ou menos por aí. Para quem segue a Hindutva, o estado indiano deveria representar a nação hindu. Nada de estado laico.
O BJP é visto como o braço político da RSS, que é um outro movimento que defende a Hindutva. A RSS é uma organização voluntária que foi criada em 1925 e é dominada por homens. Apontado como um grupo paramilitar por opositores, ele tem cerca de 5 milhões de integrantes. E desde jovem o Modi é um deles.
O passado do Modi é fundamental para entender por que ele virou uma figura tão popular. Ele nasceu em 1950 em uma cidadezinha no norte do estado de Gujarat. A família dele era humilde. Quando jovem, o Modi era um chaiwala, nome que se dá na Índia para os vendedores de chá. A família dele tinha uma pequena banca de chá na estação de trem da cidade.
Swapan Dasgupta: Well Modi personally played a role in 2 to 3 different ways.
Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Swapan Dasgupta, um importante integrante do BJP que foi parlamentar até 2022. Ele me disse que alguns aspectos fizeram com que o Modi se destacasse.
Swapan Dasgupta (dublado): O Modi era visto como uma pessoa incorruptível. Não tinha nenhuma acusação contra ele. A integridade pessoal dele era inquestionável, número 1. Número 2, ele tinha essa coisa de ser uma pessoa sem família. Tinha essa ideia de altruísmo. Terceiro, em um país onde as castas importam, o fato de ele ser de uma casta relativamente baixa também teve um papel.
Ana Luiza Albuquerque: Talvez você saiba que as castas são um sistema milenar de divisão social na Índia. Essa divisão é hierárquica e hereditária. Se você nasce em uma família que faz parte de uma casta inferior, você nunca vai mudar de casta. E pode sofrer preconceito por isso.
O marketing político do Modi soube aproveitar essas histórias sobre a origem dele. Por causa do passado, o Modi é diferente de adversários que vem de uma longa dinastia de políticos. Para os apoiadores, ele é um self-made man, ou seja, alguém que construiu sozinho tudo o que tem.
O Swapan diz que o Modi não tem família. Na verdade, ele até tem. Quando o Modi era jovem, os pais dele o obrigaram a se casar com uma menina da região. Era um casamento arranjado.
Só que ele não tava a fim e acabou abandonando a mulher. O Modi diz que nunca consumou o casamento. Inclusive, ele manteve a união em segredo até a eleição de 2014. Mas o resumo da história é que ele não tem contato com a esposa, uma professora aposentada que vive em Gujarat.
O Modi também não tem filhos. Então rola essa ideia que, como o primeiro-ministro não tem ninguém para sustentar, ele não vai roubar para beneficiar a família. Para os apoiadores, a família do Modi é a Índia. E toda a vida dele gira em torno de governar o país.
Swapan Dasgupta (dublado): O mais importante é o fato de que ali estava um homem cheio de energia, cheio de ideias. Que tinha experiência e que era claramente uma inspiração comparado com os adversários, que eram vistos como herdeiros do privilégio. Aquele homem empreendedor vindo de um passado humilde, de uma classe social baixa, que foi subindo até o topo, certamente teve um papel importante nisso. Não tem dúvida.
Ana Luiza Albuquerque: O Modi entrou no BJP em 1985 e alcançou postos altos no partido, inclusive como secretário-geral. Em 2001 ele chegou pela primeira vez a um cargo público de grande importância ao se tornar governador de Gujarat, um dos estados mais desenvolvidos da Índia e onde ele nasceu.
O Modi governou o estado durante 13 anos, até ser eleito primeiro-ministro em 2014. O BJP foi bem sucedido em colar a narrativa de que o Modi tinha levado o estado de Gujarat a outro patamar de desenvolvimento, que ele era alguém que botava as coisas para andar. Além disso, em 2014 a população estava muito insatisfeita com o partido que estava no poder, o Congresso Nacional Indiano. Principalmente por causa de denúncias de corrupção contra a legenda de centro-esquerda.
Depois de 10 anos no poder, o Modi é hoje um dos líderes mais populares no mundo –a aprovação dele fica em torno de 70%.
Swapan Dasgupta (dublado): Ele não é mais só um político ou um líder. Ele se elevou para algo como um semideus. Mas isso é baseado nas conquistas dele. Goste você ou não, é a realidade.
Ana Luiza Albuquerque: Desde que o Modi virou primeiro-ministro, a Índia vem caindo nos índices que medem a qualidade das democracias, como os do instituto V-Dem e da Freedom House. Hoje o V-Dem considera o país uma autocracia eleitoral. Ou seja, tem eleições, mas a liberdade de expressão e de associação estão sob ataque. O governo é acusado de tentar silenciar a oposição, a imprensa e as ONGs. E de criar um ambiente nocivo às minorias, especialmente os muçulmanos.
A animosidade entre os muçulmanos e os hindus não é exatamente algo novo. Ela foi inclusive estimulada pela coroa britânica no período colonial, que terminou em 1947, na linha do dividir para conquistar.
Mariana Faiad: Mas o padrão, se a gente pegar um padrão histórico da Índia desde a chegada dos muçulmanos na Índia, que na verdade os primeiros muçulmanos chegaram quando o Profeta estava vivo, que a primeira mesquita da Índia no Gujarat era do século VII… Então o Islã e a Índia estão muito interligados. Não é um grupo de invasores que chegou do nada.
Ana Luiza Albuquerque: Essa é a antropóloga Mariana Faiad. Ela é professora na Universidade Federal de São Carlos e escreveu a tese de doutorado dela sobre a violência entre hindus e muçulmanos na Índia.
Mariana Faiad: Então a gente está falando de conflitos entre indianos e não entre indianos e estrangeiros. Isso precisa ficar muito claro, porque não é o mesmo caso da Europa hoje, com conflitos com o Islã. Então a gente tem no curso da história inúmeros casos de conflitos e inúmeros casos de cooperação.
Ana Luiza Albuquerque: Organizações de direitos humanos vêm alertando para uma piora na perseguição aos muçulmanos desde que o Modi virou primeiro-ministro. É como se essa perseguição tivesse sido encampada pelo estado.
Alguns fatores contribuem para esse caldeirão. Primeiro, falas de integrantes do BJP promovendo a divisão e insuflando os hindus. Segundo, a falta de punição à altura para os extremistas. O Modi não costuma condenar os crimes dos apoiadores dele. Além disso, foram criadas leis consideradas discriminatórias contra os muçulmanos, tanto no nível federal quanto em estados liderados pelo BJP.
Mariana Faiad: Eu acho que essa é a agenda política do BJP desde sua formação e da RSS desde antes dele. De alguma forma, enfim, esse projeto de maioria hindu, de Índia para os hindus e de silenciamento e de apagamento das minorias, o Modi está exatamente trazendo isso para a legalidade, pro campo da jurisprudência, pro campo da lei, pro campo das instituições. E aí facilita o cumprimento dessa agenda absurdamente problemática.
Ana Luiza Albuquerque: Bom, depois de ouvir muito sobre toda essa história, eu queria ver de perto o que está acontecendo na Índia. Então lá fui eu pegar um voo para o outro lado do mundo. Era julho de 2023.
Ana Luiza Albuquerque: Eu estava no carro com a Anisha, a jornalista indiana que me acompanhou na viagem, quando ela fez uma analogia que me ajudou a entender o cenário do país. O Brasil e a Índia podem ser muito diferentes, mas tem um fio que conecta os líderes autoritários do século 21.
Ela virou e disse assim: sabe aquelas piadas preconceituosas que seu tio fazia na mesa do jantar e deixava todo mundo constrangido? Então, com o Modi as pessoas falam as mesmas coisas, só que agora em público, sem constrangimento.
Para além desse clima, os números mostram um aumento da violência contra as minorias. Uma organização indiana chamada Factchecker registrou 254 crimes direcionados a minorias religiosas entre 2009 e 2018. 91 pessoas morreram e quase 600 ficaram feridas. Cerca de 90% desses ataques aconteceram depois de 2014, quando o Modi chegou ao poder. Os muçulmanos foram a maioria das vítimas.
O governo Modi e o BJP dizem que não contribuíram de forma alguma para a perseguição religiosa.
Swapan Dasgupta: The political weight of the Muslim community has come down, definitely. I would agree with that.
Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Swapan Dasgupta, o político do BJP. Ele diz que os muçulmanos perderam influência política, mas que eles não são perseguidos.
Swapan Dasgupta (dublado): Dizer que os muçulmanos como indivíduos, como cidadãos, são discriminados, eu discordo disso.
Ana Luiza Albuquerque: Segundo o Swapan, Modi devolveu o orgulho aos hindus, e essa confiança pode resultar em um pouco de agressividade.
Swapan Dasgupta (dublado): Com certeza as pessoas podem ser mais assertivas em dizer "sim, eu sou um hindu". A Índia é um país de maioria hindu. A cultura da Índia é principalmente, não exclusivamente, hindu. E que seja. Nós não estamos mais na defensiva.
Ele nutriu e desenvolveu aquele orgulho hindu que estava latente e esperando por uma voz por muito, muito tempo. Claro que tem um lado negativo. Tem casos em que as minorias se sentem um pouco ameaçadas, especialmente os muçulmanos.
Ana Luiza Albuquerque: Tem alguns grupos na Índia, chamados de vigilantes, que estimulam esse orgulho hindu. Eles são formados em geral por homens, e o objetivo é garantir a preservação dos valores da religião, como a proibição de matar as vacas. Eles atuam nas comunidades, denunciando supostos crimes à polícia. E, às vezes, resolvendo com as próprias mãos.
Eu queria falar com algum vigilante para ver como isso funciona. E entender por que eles fazem tudo isso em nome da religião. Então eu e a Anisha fomos para uma cidade chamada Saharanpur. Ela fica no estado de Uttar Pradesh, um berço conservador no país.
Lá a gente encontrou o Kapil Mohda. Ele faz parte da Bajrang Dal, uma organização de jovens que promove o nacionalismo hindu. Ela é ligada à RSS, aquele grupo voluntário paramilitar que eu citei antes no episódio. A gente marcou a conversa em um restaurante no 2° andar de um centro comercial, em uma avenida que corta a cidade.
O Kapil estava esperando a gente na rua, acompanhado por um primo, que tinha um risco vermelho no meio das sobrancelhas, uma marca que alguns hindus usam. A gente subiu os quatro em um elevador apertado. O Kapil foi gentil, mas o clima estava meio tenso... O primo ficou de cara fechada o tempo todo e honestamente a gente não entendeu muito bem o que ele estava fazendo ali.
A gente entrou no restaurante e sentou em uma das mesas. O lugar tinha um estilo meio lanchonete americana: a mesa era cercada por um banco no formato de um U. A Anisha sentou entre mim e o Kapil para poder traduzir a conversa. Ela estava preocupada de fazer algumas perguntas que eu pedi.
Mas no fim o Kapil respondeu a todas elas, começando pelo nome e idade –ele tem 29 anos.
Aí eu perguntei para ele qual era o objetivo do grupo.
Kapil Mohda (dublado): O maior objetivo da Bajrang Dal é salvar a cultura do país e fazer a juventude hindu se sentir patriótica.
Ana Luiza Albuquerque: O Kapil contou que entrou para o grupo há 10 anos, porque ele sentiu que a cultura hindu estava sendo ameaçada. Daí eu pensei: como que uma maioria de 80% da população pode estar sob ameaça? Mas o Kapil continuou falando e eu entendi o que ele pensa. É parecido com o que a gente ouve de vários eleitores do ex-presidente Donald Trump nos Estados Unidos, ou do primeiro-ministro Viktor Orbán na Hungria.
Kapil Mohda (dublado): Existe uma grande conspiração para acabar com a religião hindu.
Ana Luiza Albuquerque: Para o Kapil, o número de muçulmanos está crescendo exponencialmente na Índia desde a Independência. E, se as coisas continuarem assim, eles vão acabar substituindo os hindus como maioria da população. Isso é pura propaganda das organizações nacionalistas. Não tem base na realidade. Mas é um medo comum e tem até nome: The Great Replacement, ou A Grande Substituição.
[reportagem Fox News] People on Twitter become literally hysterical if you use the term replacement, if you suggest that the democratic party is trying to replace the current electorate with new people, more obedient voters, from the third world.
Ana Luiza Albuquerque: Esse aí é o Tucker Carlson, ex-apresentador da Fox News nos Estados Unidos e apoiador do Trump e do Orbán. Nesse vídeo, em 2021, ele defende a falsa ideia de que o Partido Democrata tenta substituir os americanos por imigrantes para ganhar mais eleitores.
Esse sentimento é usado com frequência por líderes autoritários populistas: eles estimulam uma guerra imaginária entre fatias da população, num nós contra eles que pode opor, por exemplo, quem nasceu no país e os imigrantes. Assim, eles ganham apoio para aprovar políticas públicas que estimulam a divisão.
Autoridades policiais chegaram a investigar se a teoria conspiratória da Grande Substituição inspirou atentados terroristas racistas. Como em maio de 2022, quando Payton Gendron, de 18 anos, atirou e matou 10 pessoas negras em um supermercado em Buffalo, em Nova York. Antes do atentado, ele tinha publicado na internet um documento dizendo que pessoas não brancas iriam acabar substituindo os americanos brancos.
[reportagem CNN] O FBI está investigando esse caso como um crime de ódio e a polícia local disse que se tratou de um crime motivado por racismo.
Ana Luiza Albuquerque: No caso da Índia, o inimigo é o muçulmano. Isso fica claro no discurso do Kapil.
Kapil Mohda (dublado): Existe um plano dos muçulmanos para fazer da Índia um país muçulmano até 2050. Para isso, eles agem de várias formas. Uma delas é a love jihad.
Ana Luiza Albuquerque: Essa história de love jihad é o seguinte: alguns hindus desaprovam o relacionamento entre uma mulher hindu e um homem muçulmano. Para eles, os muçulmanos usam essas relações para convencer ou forçar as mulheres hindus a se converter ao Islamismo. O objetivo seria aumentar a população muçulmana na Índia.
Alguns estados têm até leis que criminalizam o ato de converter outra pessoa por meio do casamento. E várias delas foram aprovadas depois da ascensão do BJP ao poder.
Aí na prática o que acontece é que mesmo uniões consensuais são punidas pela lei. E muitas vezes, os homens, muçulmanos, acabam presos.
Quando os vigilantes ficam sabendo de um casamento inter-religioso, alguns grupos assediam o casal e pressionam a família da noiva a prestar queixa. O Kapil acredita que os muçulmanos usam até adereços hindus para enganar as mulheres e assim convencê-las a se casar com eles.
Kapil Mohda (dublado): Aí eles fazem amizade com a menina. Então eles planejam casar com ela e ter 10 filhos. É assim que eles planejam aumentar sua população.
Ana Luiza Albuquerque: O grupo do Kapil tem informantes em toda a região de Saharanpur. Além de vigiar essas supostas conversões forçadas e o abate das vacas, a organização promove treinamentos de defesa pessoal. Nesses treinamentos até as crianças aprendem a lutar com espadas.
Ana Luiza Albuquerque: Esse é um vídeo que o Kapil me mandou mostrando esse treinamento. Dois homens aparecem lutando com duas espadas e dois escudos de ferro. Ao redor, uns 15 homens observam, a maioria sentados. O Kapil justifica a importância dessas aulas desse jeito…
Kapil Mohda (dublado): Se qualquer coisa acontece com os muçulmanos, até uma criança de 5 anos sabe como reagir atirando pedras. Os hindus não sabem como fazer isso porque estão muito ocupados com a própria vida. Então, se acontece alguma emergência com a gente, pelo menos a gente vai poder se proteger, proteger a própria família.
Ana Luiza Albuquerque: Como o Kapil acredita que os muçulmanos ameaçam os hindus, eu perguntei se ele acha que o governo do Modi está tentando resolver essa questão. Ele respondeu que sim. Que antes do Modi chegar ao poder os muçulmanos provocaram muito tumulto. E que, como os políticos do BJP têm sido duros com os crimes, agora os muçulmanos pensam 100 vezes antes de arrumar qualquer confusão.
Ana Luiza Albuquerque: 2019 foi um ano marcante para o governo Modi. O BJP conseguiu ampla maioria nas urnas, garantindo a continuidade no poder e mais facilidade para aprovar pautas de interesse do partido. A partir daí, o governo lançou mão de uma série de medidas polêmicas, que dispararam protestos pelo país.
A primeira delas, em agosto, revogou a autonomia da Caxemira, uma região de maioria muçulmana no norte do país. A Índia e o Paquistão disputam o território desde a Independência da coroa britânica.
[reportagem TV Globo]Ambos governos têm acesso a armas nucleares, o que deixa a comunidade internacional ainda mais preocupada. A Caxemira é um dos lugares mais disputados do mundo, espremida entre Índia, Paquistão e China. Cada um controla uma parte, mas a disputa maior sempre foi na Caxemira indiana, de maioria muçulmana, a mesma religião paquistanesa. E a Índia é um país de maioria hindu.
Ana Luiza Albuquerque: Até então, a Caxemira tinha um status especial, com liberdade para aprovar as próprias leis.
Nas semanas antes da medida, o governo mandou milhares de tropas para a região e cortou acesso a internet e telefone. Na época, moradores disseram à BBC que foram espancados e torturados, o que o Exército negou. O New York Times reportou que mais de 2.000 pessoas foram presas, entre elas políticos, comerciantes e professores.
Nas eleições daquele ano, o BJP prometeu implementar aos poucos um registro nacional de cidadãos, o NRC, para identificar imigrantes irregulares. Todo mundo teria que apresentar uma série de documentos para comprovar que era cidadão indiano, e o governo decidiria se tava tudo ok ou não.
Essa ideia ainda não foi para frente, mas, na esteira dela, o parlamento aprovou em dezembro de 2019 a Lei de Alteração da Cidadania: a CAA. Com ela, pela primeira vez, o governo usava a religião como critério para obtenção de cidadania.
[reportagem UOL] Milhares de pessoas se reuniram em diferentes cidades na Índia. Os protestos criticam uma lei que facilita a concessão de cidadania a refugiados do Afeganistão, Bangladesh e Paquistão, com a condição de que não sejam muçulmanos.
Ana Luiza Albuquerque: A oposição apontou o caráter discriminatório da medida e disse que tanto ela quanto o registro nacional eram maneiras de pavimentar a expulsão dos muçulmanos do país. O BJP argumentou que o objetivo da lei de alteração da cidadania era proteger imigrantes em risco nos países de origem —e que, por isso, não faria sentido conceder cidadania aos muçulmanos, que são maioria nos vizinhos Afeganistão, Bangladesh e Paquistão.
A aprovação gerou várias manifestações pelo país. Em uma delas, no dia 15 de dezembro de 2019, rolou uma das cenas mais chocantes daquele ano.
No sudeste de Delhi, em uma universidade predominantemente muçulmana, a Jamia Millia Islamia, estudantes foram brutalmente atacados pela polícia. Naquela noite, a poucos quilômetros dali, no bairro de Shaheen Bagh, algumas mulheres decidiram se solidarizar com os alunos. Em protesto também contra a lei da cidadania, elas sentaram em meio a uma grande avenida e bloquearam o trânsito.Pouco a pouco mais mulheres foram chegando, e elas decidiram ficar ali 24 horas por dia, sem previsão de sair.
[reportagem Mojo Story] The women here say they will keep this vigil night after night, until the government takes back the divisive citizenship amendment act.
Ana Luiza Albuquerque: Esse protesto virou um símbolo nacional de resistência não violenta e foi desmobilizado só em março do ano seguinte —semanas depois de um dos momentos mais sangrentos da história de Delhi.
Ana Luiza Albuquerque: Era 24 de fevereiro de 2020, e o Modi recebia um convidado ilustre na Índia.
[Narendra Modi: Namaste, Trump.]
Ana Luiza Albuquerque: O governo armou um mega evento com o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em um estádio em Gujarat, estado que o Modi governou, e no qual ainda é bem popular. Mais de 100.000 pessoas estavam lá.
[Donald Trump: Namaste, namaste.]
Nesse evento os dois trocaram uma série de elogios, mostrando pro mundo como eles são próximos.
[Donald Trump: My true friend, prime minister Modi.]
Trump também disse que os dois países estavam começando a negociar grandes acordos comerciais.
Enquanto Modi e Trump faziam o show deles, o mundo tava se acabando a 900 km dali. No nordeste de Déli, acontecia o pior caso de violência entre hindus e muçulmanos da última década.
Tudo começou um dia antes da chegada do Trump. Foram 4 dias de espancamentos, torturas, esfaqueamentos, incêndios criminosos e destruição de casas. Extremistas hindus usaram até ácido para atacar um comerciante muçulmano, que perdeu a visão. 53 pessoas morreram, sendo 40 muçulmanos.
Um repórter questionou Trump sobre isso numa entrevista coletiva. Ele respondeu que tinha conversado sobre religião com o Modi. E que o Modi tinha sido incrível nessa conversa, defendendo que as pessoas tenham liberdade religiosa.
[Donald Trump: So, we did talk about religious freedom, and I will say that the prime minister was incredible on what he told me.]
Ana Luiza Albuquerque: Organismos internacionais, imprensa e oposição apontaram que falas de integrantes do BJP foram o estopim para esse rompante de violência.
Era época de eleição para a Assembleia Legislativa de Déli. Por meses, políticos do partido se aproveitaram dos protestos contra a lei de cidadania para insuflar eleitores. Os manifestantes eram tratados como traidores, ou anti-nacionais, como se fala por lá.
No dia 23 de fevereiro, um dia antes da chegada do Trump, manifestantes ocuparam outras duas avenidas da capital. Eles queriam replicar o protesto de mulheres que rolava havia meses em Shaheen Bagh.
Foi quando um político do BJP fez um discurso dizendo que, depois que o Trump fosse embora, a polícia teria que desmobilizar os dois novos protestos. E que, se isso não acontecesse, eles teriam que resolver com as próprias mãos.
Na mesma noite, apoiadores do BJP entraram em confronto com os manifestantes. A violência escalou e se espalhou pela cidade.
[reportagem Brasil de Fato] Um cenário de guerra. Essa é a sensação de quem caminha pelos bairros do nordeste de Nova Déli, capital da Índia. A cidade ainda se recupera dos confrontos da semana passada, que deixaram 49 mortos e quase 300 feridos.
Ana Luiza Albuquerque: A situação ficou muito tensa nos guetos do nordeste de Déli. Um deles se chama Shiv Vihar. Eu pedi pra Anisha me levar lá.
Shiv Vihar é um bairro bem pobre. As ruas são estreitas, de terra batida. Os postes têm um monte de fios elétricos aparentes. As casas são simples, de tijolo ou alvenaria, grudadinhas umas nas outras. Quando a gente andou por lá, tinha muito lixo espalhado e algumas valas, uns buracos com água suja acumulada. E tinha muita, muita mosca. Elas subiam do chão a cada passo que a gente dava.
A gente estava indo encontrar a Sabeena Malik, uma muçulmana que topou contar o que ela viu em fevereiro de 2020. Só que as ruas eram todas muito parecidas. Então a gente andou uns 10 minutos até conseguir achar a casa dela. A sensação era de estar num labirinto. Eu fiquei pensando a angústia que deve ter sido para quem tentou escapar dali no meio da violência, ainda mais à noite.
Também me chamou a atenção que algumas casas tinham umas bandeirinhas laranjas penduradas. Àquela altura eu já tinha entendido que o laranja é a cor dos hindus. A Anisha disse que eles penduram essas bandeirinhas para deixar claro que hindus vivem ali. Assim eles se protegem da violência contra os muçulmanos.
Eu estava um pouco tensa enquanto procurava a casa, porque as pessoas ficavam olhando para a gente e cochichando. A Anisha me lembrou que nesse tipo de comunidade as notícias se espalham rápido. Em 5 minutos todo mundo saberia que a gente estava ali. Mas deu tudo certo. E a gente finalmente achou a casa da Sabeena.
A gente entrou, tirou os sapatos e foi para um quarto. Numa parede rosa tinha um cartaz sobre um grupo político jovem muçulmano, com fotos e nomes de várias pessoas. Uma delas era a própria Sabeena. No quarto também estavam outras três mulheres, um homem e duas crianças. Todos muçulmanos. Eles ficaram sabendo que a gente viria e decidiram ir para lá também, contar as histórias deles.
A gente se sentou, e eu pedi para a Sabeena colocar o hijab atrás dos ombros, para que eu pudesse prender o microfone. Então ela começou a contar o que aconteceu naquela semana.
A Sabeena disse que em 22 de fevereiro de 2020 pessoas de fora chegaram ao bairro. Eram os vigilantes, querendo botar medo nos muçulmanos dali.
Sabeena Malik (dublado): Eles começaram a arrastar as barras de ferro nas ruas e a bater nos portões das casas. A gente ficou com medo e trancou os portões por dentro. Mas não dormimos a noite toda.
Ana Luiza Albuquerque: No dia seguinte, a Sabeena começou a ouvir muito barulho. Mas ela ainda não tinha ideia do que estava por vir.
Sabeena Malik (dublado): Nós começamos a ouvir alguns sons, as pessoas gritando, e ficamos com medo. Por que tinha tanto barulho? Nós subimos no telhado e vimos que tinha fogo e fumaça em todo lugar. O fogo estava longe, não parecia que fosse chegar na nossa área. Mas aí ele começou a se espalhar. A noite foi chegando e as pessoas foram ficando mais amedrontadas.
Ana Luiza Albuquerque: No dia seguinte, a violência estourou.
A Sabeena diz que por volta da 1 da tarde os extremistas começaram a atacar. Eles usavam pedras, ácido e armas. Ela diz que os muçulmanos então reagiram. A Sabeena acredita que alguns vizinhos hindus se juntaram aos vigilantes. Ela diz que eles usavam capacetes, mas que dava para reconhecê-los.
No fim do dia, os vigilantes invadiram a casa da Sabeena. Ela disse que eles levaram um botijão de gás para explodir o lugar. A Sabeena estava escondida no telhado com a mãe e a filha. Ela diz que a explosão foi tão grande que a casa tremeu. Tudo por dentro ficou destruído. Os vigilantes colocaram fogo em várias outras casas. A Sabeena diz que eles gritavam Jai Shri Ram, um grito de celebração hindu que foi apropriado pelos extremistas.
Por volta da meia-noite, a Sabeena e a família dela fugiram. Elas foram resgatadas por forças do governo. E deixaram tudo para trás: joias, dinheiro, até os sapatos. Não tiveram tempo nem de trancar o portão.
A Sabeena diz que quando ela finalmente saiu na rua, viu fogo em todo lugar. E como ela estava descalça, acabou pisando em cacos de vidro. Quando ela me contou isso, eu imaginei um cenário apocalíptico.
Sabeena Malik (dublado): Eu lembro como as ruas ficaram totalmente desertas e silenciosas. E como logo antes disso, havia muitos gritos, muitos berros e "Jai Shri Ram". Então você imagina aquela escuridão, aquela atmosfera nas ruas. Não havia muçulmanos porque todos estavam dentro de casa. As pessoas tinham medo. Só Deus sabe o que eles iam fazer com a gente.
Ana Luiza Albuquerque: Por 15 dias a Sabeena ficou com parentes em Mustafabad, um gueto vizinho de maioria muçulmana. Quando ela voltou para casa, viu que o que não tinha sido destruído tinha sido roubado. Mas talvez essa não tenha sido a pior parte de voltar. A Sabeena conta que antes ela costumava conviver com os vizinhos. Mas que, depois dos ataques, ela e família vivem com medo, tentando evitar qualquer confusão.
Sabeena Malik (dublado): A gente costumava passar tempo juntos. Era bem bom, na verdade. Nossos irmãos tinham amigos que costumavam ir à nossa casa nas festas muçulmanas. Hoje a gente diz oi um pro outro, mas não é como antes. Não tem o respeito de antes. A gente nunca sabe o que eles podem acabar fazendo.
Ana Luiza Albuquerque: O nacionalismo hindu é a cara mais evidente do autoritarismo do Modi. E a experiência indiana é um estudo de caso para uma das principais táticas dos líderes autoritários: a exclusão ou perseguição das minorias. Muitas vezes eles promovem ódio contra grupos minoritários para unir apoiadores em torno de um inimigo em comum. E para tirar o foco de questões importantes.
Mariana Faiad: Esses grandes líderes fazem uso dessa culpabilização de certas minorias…
Ana Luiza Albuquerque: Essa é a Mariana Faiad, antropóloga que falou no começo do episódio.
Mariana Faiad: …visto que a Índia está numa crise econômica desde sempre, de falta de emprego e carência de diversas coisas. Você esteve na Índia, viu como a situação é bastante caótica. E, com a pandemia, piorou.
Ana Luiza Albuquerque: A economia do país sofreu um golpe forte com a pandemia. De abril a junho de 2020, o PIB encolheu 24%. Depois da Covid, a Índia se recuperou. Mas ainda tem que lidar com o desemprego, que está em torno de 7%.
Essa taxa chega a 42% entre os jovens com menos de 25 anos que têm ensino superior. E embora a situação tenha melhorado muito nas últimas décadas, 16% da população indiana ainda vive na pobreza, segundo o índice de pobreza multidimensional da ONU, que mede padrão de vida, educação e saúde. Para comparar, esse mesmo percentual é de 4% no Brasil.
Mariana Faiad: Então o Modi chega como o salvador, de culpabilizar alguém pelo problema da Índia. Então os muçulmanos são os inimigos número um.
Ana Luiza Albuquerque: O Modi seguiu outras táticas da cartilha autoritária, além do nacionalismo religioso.
Desde que assumiu, e especialmente a partir do segundo mandato, o Modi entrou numa campanha para censurar a oposição, a imprensa, os ativistas ou basicamente qualquer um que critique duramente o governo. Mas o Modi, assim como outros líderes autoritários do século 21, está preocupado com a imagem global dele. Por isso ele aposta num verniz democrático e tem usado uma ferramenta importante para deter os críticos: o sistema legal.
Alguns opositores foram presos depois de falar mal do Modi, acusados de crimes como difamação e conspiração criminal. Foi o caso do Pawan Khera, porta-voz do maior partido de oposição, o Congresso Nacional Indiano.
Ele foi preso em fevereiro de 2023, depois de criticar o primeiro-ministro. O Pawan ia viajar para a convenção nacional do partido, mas a polícia tirou ele do voo ainda em Nova Déli, antes da decolagem. Algumas horas depois, a Suprema Corte permitiu que ele fosse liberado depois de pagar fiança.
Pawan Khera (dublado): Eles tentaram me tirar do avião com uma justificativa muito frágil. Mas não tenho medo. Se tivesse medo, a gente não estaria lutando. Temos cuidado, mas temos que dominar o nosso medo.
Ana Luiza Albuquerque: Em março de 2023, outro opositor, Rahul Gandhi, foi condenado a dois anos de prisão por difamação contra o Modi. Ele não tem nada a ver com o Mahatma Gandhi, o famoso líder da independência indiana, mas é uma figura importante na política do país.
Em um evento de campanha alguns anos antes, o Gandhi tinha perguntado por que todos os ladrões têm o sobrenome Modi.
Ele foi condenado por uma corte local de Gujarat, estado do Modi, e perdeu o mandato que tinha no Parlamento.
Eu perguntei para o Pawan se a oposição tem sido perseguida. Ele ficou reticente em usar a palavra, mas disse que existem tentativas de silenciamento.
Pawan Khera (dublado): Você viu o que eles fizeram com o Rahul Gandhi. Ele deixou de ser membro do Parlamento, ele foi retirado da residência oficial. A lei foi aplicada de uma forma excepcionalmente rigorosa no caso dele. Nunca antes na história da Índia se viu esse tipo de punição contra alguém. É difícil fazer oposição nesse país agora.
Ana Luiza Albuquerque: Em agosto do ano passado, a Suprema Corte da Índia suspendeu a condenação e devolveu o mandato do Rahul.
No governo Modi também dispararam as acusações de sedição. A lei de sedição foi criada pela coroa britânica na época colonial para tentar barrar o movimento da Independência. Ela prevê punição para quem tenta estimular desprezo ou ódio pelo governo.
Uma outra lei, contra atividades terroristas, também tem sido usada para perseguir opositores. Ela é de 1967, e uma emenda editada em 2019 deu poder ao governo para definir quem é terrorista. É super difícil ter o direito a fiança se você é acusado de terrorismo, então as pessoas passam anos presas até serem julgadas.
O governo Modi tem usado outra tática comum dos autoritários –o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán é fã dessa aqui. Quando o governo quer pressionar ou suspender a atividade de uma ONG, um site ou um jornal, ele alega que esse grupo recebeu financiamento estrangeiro irregular, ou que tem um problema com o pagamento dos impostos.
Foi assim que o governo reagiu a um documentário da BBC que expôs críticas ao Modi. Algumas semanas depois do lançamento, em janeiro de 2023, funcionários da Receita fizeram uma busca nas redações da emissora britânica.
[reportagem AFP] Autoridades fiscais indianas fizeram operações de busca e apreensão nos escritórios da BBC em Nova Déli e Mumbai nesta terça-feira, algumas semanas depois da exibição de documentário crítico ao papel do premiê Narendra Modi nos distúrbios religiosos de 2002.
Ana Luiza Albuquerque: Os jornalistas passaram por longos questionamentos e alguns tiveram que virar a noite na redação. Esse documentário trazia evidências de que Modi fechou os olhos para um caso de violência contra muçulmanos que deixou 1.000 mortos em 2002 em Gujarat, na época em que ele era governador. O filme acabou banido pelo governo no ano passado.
O Modi e o BJP negam ter qualquer aspiração autoritária. E costumam desqualificar os resultados dos índices que medem a qualidade das democracias, como o V-Dem e a Freedom House.
Swapan Dasgupta: Those indexes, the various indexes, which put the freedom of speech in India on par with Afghanistan.
Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Swapan Dasgupta, o político do BJP que você ouviu antes. Ele tá debochando desses índices, dizendo que eles colocam no mesmo patamar a liberdade de expressão na Índia e no Afeganistão. O que não é verdade.
Swapan Dasgupta (dublado): Eu não preciso falar sobre isso porque você consegue ver. A gente tem uma imprensa vibrante. Eles veem tudo.
Ana Luiza Albuquerque: O Swapan diz que a oposição ainda é competitiva na Índia e repete que ninguém pode dizer que as eleições não são livres e justas no país.
Mas eleição não é sinônimo de democracia. É subjetivo falar em eleições livres e justas quando o governo está frequentemente pressionando a imprensa e as organizações civis, e quando opositores são presos por fazer críticas.
Com tudo isso rolando, eu estava bem preocupada antes de ir para lá. Quando eu entrei com o pedido do visto, um cônsul da Índia em São Paulo me mandou um email com uma demanda inesperada. Ele queria que eu enviasse qualquer matéria que eu tivesse escrito sobre a Índia. Eu não tinha nenhuma.
A Anisha tinha me avisado que na minha volta os funcionários da imigração poderiam pedir para checar o que eu tinha gravado. Isso não aconteceu, mas eu fui questionada sobre a visita. O que eu tinha reportado, se eu tinha ficado só em Déli.
As acusações de autoritarismo não atrapalharam a popularidade do Modi. Um dia a gente estava no carro e a Anisha me contou sobre uma piada que circula por lá. Ela disse assim: se amanhã o Modi anunciar que só pessoas com uma perna podem viver na Índia, os apoiadores dele vão cortar fora a perna direita.
[Anisha Dutta: Which is very true, it's not even a joke.]
Ana Luiza Albuquerque: Isso me lembrou de uma fala do Trump de 2016, em um evento de campanha. Ele disse que se atirasse em alguém no meio da 5ª avenida em Nova York, ele não perderia nenhum voto.
[Donald Trump: Where I could stand in the middle of 5th avenue and shoot somebody and I wouldn't lose any voters, ok? It's incredible.]
Ana Luiza Albuquerque: Eu perguntei para o Swapan Dasgupta, o político do BJP, como o Modi consegue manter a popularidade tão alta há quase 10 anos.
Swapan Dasgupta (dublado): Primeiro, a liderança dele não é desafiada dentro do BJP. Não tem ninguém o desafiando. Segundo, ele é visto como um homem altruísta, que tem essa característica de trabalhar de manhã até de noite, de um jeito meio fanático. Ele é conhecido por ter construído uma marca global.
Ana Luiza Albuquerque: Essa questão da marca global é importante. Desde 2014, o Modi já fez mais de 70 viagens internacionais –e olha que isso inclui anos de pandemia.
A Mariana Faiad, a antropóloga da UFScar, diz que esse trânsito internacional diferencia o Modi de outros líderes autoritários.
Mariana Faiad: O Modi se aproveita de uma relação muito particular da Índia com o Ocidente. Então, o tipo de aliança que ele faz com o Ocidente não é fechada à turminha dos malvadões, como era o Bolsonaro com o Trump.
Ele fez um show super estrela quando o Trump foi para a Índia, parecia show de Bollywood. Foi um negócio maravilhoso. Mas quando ele encontra outros líderes progressistas, ele faz a mesma coisa. Então ele não é um cara que se afilia a essa extrema direita claramente, eu sou, como o Bolsonaro sempre fez. Vamos fazer grupos secretos e não sei mais o que. Não. O Modi circula. Então ele é muito mais perigoso.
Ana Luiza Albuquerque: Esses encontros com outras potências mostram para o eleitor que o país tem prestígio internacional. Na nossa conversa, o Swapan disse que o Modi fez os indianos sentirem orgulho de novo. Isso apareceu quando eu e a Anisha fomos para a rua. A gente fez uma espécie de etnografia selvagem em um mercado de rua em Déli. A gente foi parando as pessoas e perguntando por que elas gostavam do Modi.
E desde uma mulher rica com sacolas de grife até um homem desempregado deitado numa moto, a maioria disse que o Modi devolveu o orgulho para os indianos. Que agora os outros países respeitam a Índia.
O cara da moto, por exemplo, disse que antes a Índia tinha que implorar pela atenção dos outros países, mas que agora o Modi tem os outros líderes aos pés dele.
Essa afirmação é exagerada, mas o que importa para o Modi é que as pessoas acreditem nisso. E que ele consiga mexer com sentimentos tão profundos quanto o orgulho de uma população inteira. A antropóloga Mariana Faiad acredita que o Modi está na vanguarda de outros líderes de direita. Que antes do Trump e do Bolsonaro, ele já trabalhava com uma ideia nostálgica de recuperar o passado perdido.
Mariana Faiad: E o Modi lança métodos, o Make America Great Again já estava acontecendo na Índia muito tempo antes. Vamos fazer a Índia voltar a ser o que ela era. E o que é a Índia voltar a ser o que ela era? Num tempo em que os muçulmanos não existiam e que a civilização hindu… Nem existe esse tempo histórico. São delírios, assim, que ele faz. Então é importante pôr o Modi nessa chave, ele é um líder de extrema-direita sectário, que não se define como tal.
Ana Luiza Albuquerque: Com a aprovação do Modi na casa dos 70%, a expectativa é que a oposição tenha dificuldades nas eleições desse ano. Quando eu fui pra Índia, 26 partidos tinham acabado de decidir que colocariam as diferenças de lado e se uniriam em uma grande coalizão contra o BJP. O grupo foi chamado de Indian National Developmental Inclusive Alliance. Abreviado, as iniciais formam a palavra India.
O Pawan Khera, líder da oposição que você já ouviu nesse episódio, disse que a estratégia eleitoral vai ser retomar a narrativa e focar em temas práticos, como o emprego e a saúde.
Pawan Khera (dublado): Eles tentam desviar a atenção do país para uma narrativa de divisão, de polarização. Isso não vai funcionar porque o Modi já tentou esses truques antes. As pessoas já perceberam esses truques.
A narrativa deveria estar nos problemas do desemprego, da economia, da segurança das mulheres, da saúde. Acho que essa é a nossa estratégia, trazer de volta a narrativa para onde ela pertence.
Ana Luiza Albuquerque: Essa é uma tática comum da oposição diante de um líder autoritário. Unir partidos da esquerda à direita. Impedir que o populista domine o debate com temas que só favorecem a ele. Às vezes funciona. Deu certo aqui com o Lula em 2022.
Mas tem vezes que a democracia já está muito envenenada. No próximo episódio eu vou te contar a história de um líder que tem ensinado por aí uma fórmula para derrotar os progressistas. Ele venceu as eleições 1, 2, 3, 4 vezes. Ninguém consegue pará-lo.
[Eduardo Bolsonaro] Esse aí é o primeiro-ministro da Hungria, o Viktor Orbán. E por que eu vou falar dele? Porque a Hungria é um exemplo de sucesso. De muito sucesso.
Ana Luiza Albuquerque: Eu sou Ana Luiza Albuquerque, responsável pela apresentação, roteiro, produção e reportagem do Autoritários. A Anisha Dutta colaborou na produção e reportagem deste episódio.
A edição de som é do Raphael Concli. A coordenação é da Magê Flores e do Daniel Castro, a produção no roteiro é do Victor Lacombe e a supervisão dele é do Gustavo Simon. A identidade visual é da Catarina Pignato.
O episódio usou áudios da TV Cultura, AFP, Fox News, CNN Brasil, TV Globo, UOL, Mojo Story, Sansad TV, Brasil de Fato, The Indian Express, CNN, CBS News, India Today, TV Brasil e NDTV.
Na dublagem você ouviu as vozes do Cristiano Pombo, Fabio Zanini, Flavio Ferreira, Renata Galf e Thomé Granemann.
Até semana que vem.