An English summary of this report is below. The original report, published in Portuguese in Folha de S.Paulo, follows.
A woman who hasn't heard from her jailed husband, who's a taxi driver, for over a year. A street vendor who is arrested while working and ends up being tortured in prison. A judge removed from office after criticizing a judicial reform. This episode tells these stories and shows how Salvadoran President Nayib Bukele has tightened public security policies, reducing homicides, but violating constitutional guarantees and putting thousands of innocent people behind bars.
Referring to himself as the "coolest" dictator in the world, Bukele used bitcoin to work his political marketing while trying to stifle the system of checks and balances.
To understand this process, we hear from political scientist Carlos Monterrosa, from Central American University; Marvin Reyes, secretary of a police union group; Salvadoran journalist Nelson Rauda; and Renato Sérgio de Lima, director of the Brazilian Public Security Forum.
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Autoritários: Como Bukele promoveu violações de direitos humanos em El Salvador
Com regime de exceção, homicídios caíram significativamente; por outro lado, milhares de inocentes foram presos
SÃO PAULO — Eram 3 da tarde de um domingo e o tempo estava abafado em Las Cañas. Mesmo com o calor forte, os moradores da comunidade, que fica perto da capital de El Salvador, se juntaram naquele dia, em agosto do ano passado, para uma partida de futebol.
O campo não estava nas melhores condições, mas bom o suficiente para um amistoso. De um lado, com camisas brancas, estavam os jogadores do Los Fantasmas. Do outro, de vermelho, o time que eles apelidaram de Manchester United. Essa pode parecer uma cena normal numa comunidade latino-americana, mas de normal não tinha nada. Pouco mais de um ano antes, era impossível aquela partida acontecer.
Até então, Las Cañas era um campo de guerra. Por duas décadas, a comunidade foi dividida ao meio pelas duas principais gangues do país: a Mara Salvatrucha, conhecida como MS-13, e a Barrio 18. Quem vivia na parte alta, controlada pela MS-13, não podia circular na parte baixa, da Barrio 18. E vice-versa.
Com a decretação de um regime de exceção apoiado pelo presidente Nayib Bukele, essa realidade mudou e os homicídios caíram significativamente no país. Mas isso teve um custo altíssimo: muitas violações de garantias constitucionais, a maior taxa de encarceramento global e milhares de inocentes presos. O sexto episódio do podcast Autoritários conta as histórias das vítimas das violações de direitos humanos promovidas pelo Estado salvadorenho.
É o caso do taxista José Antonio, preso desde julho de 2022. Além de não poder visitá-lo, a família não consegue informações sequer sobre seu estado de saúde na prisão. Ele foi acusado de fazer parte de uma gangue, o que é refutado por sua mulher, Blanca Rivera.
"Eu disse para me explicarem por que ele está detido, porque meu esposo é um homem trabalhador, que sempre deu um bom exemplo para os filhos", diz ela.
Desde o começo do regime de exceção, em março de 2022, até setembro do ano passado, o governo já tinha prendido mais de 70 mil pessoas. Sete mil foram soltas depois de passar meses na prisão. Isso quer dizer que 2% da população acima de 18 anos estava presa.
Há muitos relatos de tortura e mortes nas prisões. A ONG Cristosal documentou que, um ano depois do começo do regime, 132 pessoas haviam morrido nos presídios.
A série narrativa em áudio da Folha conta em sete episódios o processo de crise democrática que está em curso no mundo. Cada um deles se debruça sobre um líder autoritário contemporâneo: Narendra Modi (Índia), Viktor Orbán (Hungria), Donald Trump (Estados Unidos), Jair Bolsonaro (Brasil), Nayib Bukele (El Salvador) e Daniel Ortega (Nicarágua).
Foram oito meses de pesquisa, seis viagens e dezenas de entrevistas com políticos, pesquisadores, jornalistas, ativistas e, principalmente, cidadãos que têm suas vidas afetadas diretamente pelo autoritarismo.
Apresentação, roteiro, produção e reportagem do Autoritários foram feitos pela repórter Ana Luiza Albuquerque. Há oito anos na Folha, Ana Luiza trabalha na editoria de política e é mestre em jornalismo político pela Universidade Columbia (EUA).
A edição de som do projeto é de Raphael Concli. A coordenação é de Magê Flores e Daniel Castro, a produção no roteiro é de Victor Lacombe e a supervisão é de Gustavo Simon. A identidade visual é de Catarina Pignato.
Os episódios são publicados toda semana, às quintas-feiras. Eles podem ser ouvidos no site da Folha e nas principais plataformas de áudio.
AUTORITÁRIOS
quando quintas-feiras, às 8h
onde nas principais plataformas de podcast
LEIA A TRANSCRIÇÃO DO SEXTO EPISÓDIO
BUKELE, SEGURANÇA PÚBLICA E VIOLAÇÕES EM EL SALVADOR
Ana Luiza Albuquerque: Eram 3 da tarde de um domingo. O tempo estava abafado em Las Cañas. Mesmo com o calor forte, os moradores da comunidade (que fica perto da capital de El Salvador) se juntaram naquele dia, em agosto do ano passado, para uma partida de futebol.
O campo era grande, mas não estava nas melhores condições. A maior parte dele era de terra batida, com alguns pedaços de grama. Mas tava bom o suficiente para um amistoso. De um lado, com camisas brancas, estavam os jogadores do Los Fantasmas. Do outro, de vermelho, o time que eles apelidaram de Manchester United.
Essa pode parecer uma cena normal numa comunidade latino-americana. Mas de normal não tinha nada. Pouco mais de um ano antes, era impossível aquela partida acontecer. Até então, Las Cañas era um campo de guerra.
Por duas décadas a comunidade foi controlada pelas duas principais gangues do país: a Mara Salvatrucha, conhecida como MS-13, e a Barrio 18.
[reportagem AFP] As duas gangues surgiram nos anos 80 e 90, e têm ramificações na região e até na Europa. De acordo com estimativas oficiais, elas contam com cerca de 70 mil membros em El Salvador, concentrados às centenas em alguns bairros.
Ana Luiza Albuquerque: As duas pandillas, como esses grupos criminosos são chamados, dividiam Las Cañas ao meio. Quem vivia na parte alta, dominada pela MS-13, não podia circular na parte baixa, da Barrio 18. E vice-versa.
Pedro Rojas: Bueno, mi nombre es Pedro Rojas. Ahorita estamos en la colonia Las Cañas del municipio de Ilopango.
Ana Luiza Albuquerque: O Pedro Rojas vive há mais de 30 anos na comunidade, é professor e líder comunitário. A gente se encontrou no colégio onde ele dá aula em Las Cañas. O Pedro me descreveu como era a vida por lá antes, com as pandillas. Ele contou que até pessoas da mesma família eram proibidas de se visitar se morassem em partes diferentes do bairro.
Pedro Rojas: Había mamás que vivían ahí abajo, hijos que vivían aquí arriba.
Ana Luiza Albuquerque: Mães e filhos passaram a ser avisados de que não deveriam ir para a outra parte do bairro, e eles acabavam tendo que se encontrar fora da colônia.
Pedro Rojas: Llegó un momento en que nadie bajaba y nadie subía, aunque fuera un pariente.
Ana Luiza Albuquerque: A vida por lá mudou totalmente depois de março de 2022. Foi quando o Congresso aprovou um regime de exceção para combater a criminalidade, a pedido do presidente Nayib Bukele.
[reportagem Globo] O estado de exceção foi prorrogado diversas vezes e dura até hoje, com a suspensão de direitos constitucionais, como a realização de assembleias e inviolabilidade de correspondências. A medida também autorizou prisões sem mandado e que detentos não tenham direito a um advogado.
Ana Luiza Albuquerque: A gente vai falar mais sobre o regime de exceção e como ele levou inocentes à cadeia. Mas circulando por Las Cañas, o que eu ouvi foi que o bairro não vive mais sob o controle e a extorsão dos criminosos, que foram presos ou fugiram.
Agora os moradores tentam achar jeitos de encurtar a distância imposta pelas gangues durante tantos anos. O torneio de futebol foi uma das ações para tentar integrar a parte alta e a parte baixa do bairro. O Pedro tá entre as lideranças que defendem a união da comunidade, que eles chamam de colônia.
Pedro Rojas: Yo creo en la unidad. Si yo creo en que la colonia es una sola, no voy a andar dividiendo, voy a unificar.
Ana Luiza Albuquerque: Por décadas El Salvador foi um dos países mais violentos do mundo. Em 2015, foram 106 homicídios para cada 100 mil habitantes: quase 4x mais que no Brasil. Desde o regime de exceção de Bukele, os homicídios caíram drasticamente. Mas isso teve um custo altíssimo: muitas violações de garantias constitucionais, a maior taxa de encarceramento global e milhares de inocentes presos.
Em uma das vezes que Bukele foi acusado de minar a democracia no país, ele respondeu a essa crítica com ironia: chamou a si mesmo de o ditador mais cool do mundo. Depois de ter sido prefeito da capital, ele se elegeu presidente em 2019, com 37 anos. A Constituição salvadorenha proíbe a reeleição, mas depois de uma manobra no Judiciário, o Bukele concorreu de novo, em fevereiro deste ano, e se reelegeu.
Nayib Bukele: Y no solo hemos ganado la Presidencia de la República por segunda vez, sino que hemos ganado la Asamblea Legislativa con 58 de 60 diputados.
Ana Luiza Albuquerque: Eu sou Ana Luiza Albuquerque e esse é o sexto episódio do Autoritários: um podcast da Folha que investiga líderes contemporâneos que ameaçam a democracia e as conexões entre eles. O projeto tem apoio do Pulitzer Center on Crisis Reporting.
Ana Luiza Albuquerque: Antes do jogo de futebol, o Pedro, professor da colônia Las Cañas, me levou para conhecer a região.
Pedro Rojas: Entonces esta hasta ahí abajo és una calle principal. Vamos a la canchita para que la conozcan.
Ana Luiza Albuquerque: A comunidade é inclinada: tem a parte baixa e a parte alta. Ela começa lá embaixo em um campo de futebol, e termina lá em cima, em uma estrada. Essa estrada é o único ponto de entrada e saída para Las Canãs. Eu fui pra lá com o Nelson Rauda, um jornalista salvadorenho de quem eu fiquei amiga no mestrado. Se você está com a gente desde o primeiro episódio, deve lembrar do Nelson contando que teve o celular monitorado com o Pegasus, aquela ferramenta de espionagem usada por governos autoritários.
O Nelson parou o carro numa pracinha perto da estrada, aquela da parte alta, onde o Pedro estava esperando a gente.
A gente foi descendo, a pé, entrando mais e mais na comunidade. Eu lembro de pensar como seria difícil uma pessoa escapar dali se uma das gangues quisesse desaparecer com ela. O Pedro diz que os criminosos tinham muito poder sobre a colônia. Eles podiam ordenar, por exemplo, que as ruas ficassem vazias e que ninguém saísse de casa.
Pedro Rojas: Si ellos decían hoy a las 18:00 de la tarde no queremos a nadie, pues tú no salías de la casa a las 18:00 de la tarde.
Ana Luiza Albuquerque: A colônia tem duas ruas principais, onde passam os carros e os ônibus, e por onde a gente desceu. Elas são cortadas por várias outras ruas estreitas, com chão de cimento. Nessas ruas, as casinhas são grudadas umas às outras, todas coloridas. Eu lembro de ver muitas árvores, muitas flores, e foi difícil imaginar que um lugar agradável assim tenha ficado tanto tempo num fogo cruzado.
O Pedro me explicou que essas ruazinhas estreitas são nomeadas por letras.
Pedro Rojas: Si ustedes se fijan, M, N, O, P, Q, R, S, T. Seis pasajes.
Ana Luiza Albuquerque: Era uma dessas letras, a M, de MS-13, que dividia o território. Se você morasse da M para cima, você estava sob controle da MS-13. Se você morasse da M para baixo, você tava na parte da Barrio 18.
A rua M era um território meio indefinido. O Pedro disse que às vezes os criminosos circulavam ali para intimidar o outro lado, mesmo sabendo que a qualquer momento as coisas poderiam sair do controle. Ele contou que os pandilleros não pensavam duas vezes se vissem alguém da gangue rival. Se estavam armados, disparavam. Era um campo minado.
Pedro Rojas: Entonces ninguno de los dos lo pensaba dos veces, si tenían arma en ese momento les disparaba.
Ana Luiza Albuquerque: A colônia ainda tem marcas daquela época, tipo um muro cheio de buracos de bala.
Pedro Rojas: Acá todavía se puede ver las perforaciones que hay. Es un hecho palpable de que existió, existe, ese conflicto.
Ana Luiza Albuquerque: O Pedro conta que eles não podiam atender o celular na rua —as gangues acusavam quem fazia isso de repassar informações. Os carros e até os ônibus tinham que baixar o farol para seguir para a parte baixa. Era um sinal para os criminosos saberem que não tinha ninguém de fora entrando ali. E quem morava em partes diferentes da comunidade não podia nem ser visto conversando no ônibus. Se não, os pandilleros perguntavam: por que vocês estavam conversando? O que você tava dizendo?
Pedro Rojas: Ah, le estás pasando información. Tenía consecuencias. Te paraban y por qué estabas platicando? Qué le estabas diciendo, ah?
Ana Luiza Albuquerque: As gangues chegaram a expulsar moradores, fizeram ameaças de morte e depois tomaram as casas das pessoas.
Pedro Rojas: Mucha gente la sacaron de la colonia. Ándate. Mañana si amaneces, amanece muerto.
Ana Luiza Albuquerque: Caminhando por lá a gente viu imóveis totalmente abandonados. O Pedro me disse que eles tinham sido ocupados pelos pandilleros.
Com o regime de exceção a polícia fez operações pesadas na colônia. O Pedro acredita que quase todos os criminosos foram presos. Pouco a pouco, eles foram desaparecendo do dia-a-dia dali.
Pedro Rojas: Poco a poco fueron desapareciendo, fueron desapareciendo, fueron desapareciendo. Entonces tú te dabas cuenta. Ah, ya se lo llevaron.
Ana Luiza Albuquerque: Nas redes sociais, o Pedro via notícias de quem tinha sido capturado.
Aos poucos, a vida na comunidade foi voltando ao que era antes do domínio das pandillas. Pela primeira vez em muitos anos, as filhas do Pedro, que já tinham saído da colônia, se sentiram seguras para passar o Natal na casa dele.
Pedro Rojas: Este diciembre mi hija vino a las 5 de la tarde y se fue a las 11 de la noche. Cosa que no se podía hacer.
Ana Luiza Albuquerque: Conhecer a história de Las Cañas me ajudou a entender por que apesar da prisão de inocentes e das violações de direitos humanos, a maioria da população apoia o regime. Quando as pessoas não têm acesso a um direito tão básico como a segurança, muitas vezes elas acabam confiando em líderes autoritários que propõem soluções simples para problemas complexos. Só que tem o risco de eles avançarem com o autoritarismo mais e mais. E aí pode ser muito tarde para voltar atrás.
O Pedro diz que está feliz com a nova realidade da colônia.
Pedro Rojas: Yo me siento feliz, pero también la otra parte…
Ana Luiza Albuquerque: Mas ele também se preocupa com a falta de transparência do governo e com os milhares de inocentes que estão presos há meses.
Pedro Rojas: Gente inocente en la cárcel esperando más de un año. Porque no se le puede probar nada.
Ana Luiza Albuquerque: Ele diz que o regime de exceção, que vem sendo estendido mês a mês pelo Congresso, há quase dois anos, não vai resolver o problema da violência de forma estrutural.
Pedro Rojas: Pero la pregunta: eso va a funcionar? Cuánto tiempo? Para que funcionen que tienen que haber?
Ana Luiza Albuquerque: O Pedro defende que o governo tem que trabalhar na geração de empregos e investir em programas sociais. Que não basta simplesmente prender os criminosos.
Pedro Rojas: No sólo es atacar, desaparecer a los delincuentes y ya estuvo, no.
Ana Luiza Albuquerque: Nayib Bukele nasceu em San Salvador, em uma família de origem palestina que tinha muitos negócios. Ele comandou a agência de publicidade do pai antes de ter uma ascensão meteórica na política, a partir de 2012. Naquele ano ele foi eleito prefeito de uma cidade pequena próxima da capital. Para disputar esse cargo ele se filiou ao FLMN, o principal partido de esquerda do país.
Nayib Bukele: Soy Nayib Bukele, candidato a la alcaldía de Nuevo Cuscatlán. Mis padres me enseñaran que con esfuerzo y dedicación se logran las metas.
Ana Luiza Albuquerque: Três anos depois, em 2015, o Bukele se elegeu prefeito de San Salvador. O cargo costuma ser uma plataforma para voos mais altos na política do país.
Depois de muitos conflitos internos com o FLMN, em 2017 o Bukele foi expulso pelo comitê de ética do partido. Daí ele criou uma nova legenda populista, a Nuevas Ideas, para disputar a presidência em 2019.
Como questões judiciais impediram que ele concorresse pelo novo partido, ele se candidatou por uma sigla de direita, chamada GANA. Pois é, migrou de um lado a outro do espectro político sem muita explicação, o que alimentou as críticas de que Bukele é um oportunista.
Carlos Monterrosa: Él se presentó como alguien distinto…
Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Carlos Monterrosa, professor de ciência política na Universidade Centro-Americana, que fica na capital.
Carlos Monterrosa: …distinto a todos los que habían ejercido el poder, por lo menos en las últimas dos décadas.
Ana Luiza Albuquerque: Ele conta que nas eleições de 2019 o Bukele se apresentou como um outsider, diferente dos políticos tradicionais. Alguém jovem, irreverente, que pensa para frente e que pode oferecer um bom futuro para os salvadorenhos.
Carlos Monterrosa: Claro, él se presenta como alguien joven, alguien que puede ser visto como irreverente, como una persona que está pensando hacia adelante.
Ana Luiza Albuquerque: E como alguém firme, que vai tomar decisões e botar as coisas para andar.
Carlos Monterrosa: Y también como alguien que va a ejecutar cosas, que va a tomar decisiones y que las va a hacer.
Ana Luiza Albuquerque: Essa estratégia do Bukele veio como resposta a um desgaste dos dois principais partidos que se revezavam no poder nos últimos 30 anos: o FLMN, de esquerda, e o Arena, de direita. As suspeitas de corrupção envolvendo as duas legendas foram um dos motivos para esse desgaste.
Daí Bukele apareceu com uma estratégia de marketing que fez com que os partidos tradicionais parecessem ultrapassados. Essa estratégia começa com a imagem dele, que aposta numa identidade millennial. Ele volta e meia aparece com roupas informais, incluindo um boné para trás, que virou uma marca registrada dele.
O Bukele também fala de um jeito mais despachado, sem pompa, e costuma ser sarcástico quando a imprensa coloca ele contra a parede. Esse comportamento irreverente rendeu uma multidão de fãs na América Latina, muito ativos nas redes sociais.
TikToker: Tropa, eu não sei vocês. Mas eu tô apaixonado por esse cara. Nayib Bukele é o presidente mais popular das Américas.
Ana Luiza Albuquerque: O Bukele ganhou até músicas em homenagem a ele, de vários estilos.
Cantantes:
Trabajando arduamente, 2407, el presidente dando ejemplo así que todos lo respeten.
Nayib Bukele es el presidente que todos quieren.
Povo de El Salvador ganhou um presente de Deus.
Nayib Bukele usted es diferente.
Ana Luiza Albuquerque: Desde o começo da carreira política o Bukele bate muito na tecla de derrotar "los mismos de siempre" –os mesmos de sempre.
Nayib Bukele: Entonces bueno, no nos quejemos por la realidad del país, porque nosotros mismos estamos votando por los mismos de siempre.
Ana Luiza Albuquerque: Nessa entrevista, quando estava concorrendo para prefeito de San Salvador, ele defendeu que as pessoas deveriam votar em candidatos sem experiência política. Porque se não, as coisas não mudariam nunca.
O Carlos Monterrosa diz que essa frase dos "mesmos de sempre" se aproveita daquele discurso de "nós contra eles", uma estratégia populista clássica.
Carlos Monterrosa: Eso creo que es algo que marca mucho la distinción entre ellos y nosotros, que también es muy particular en las narrativas y en los lenguajes populistas.
Ana Luiza Albuquerque: Ou seja, nós estamos a favor do povo. Eles impedem o bem estar do povo.
Carlos Monterrosa: Y están ustedes, que son todos los obstáculos y todos los que le bloquean al pueblo su bienestar.
Ana Luiza Albuquerque: Por trás dessa fachada descolada, millennial, empresarial, também tinha alguém disposto a usar medidas autoritárias para lidar com a criminalidade. O Carlos diz que nos últimos anos algumas pesquisas mostraram que a população apoiava medidas desse tipo, que as pessoas queriam um líder forte. Ele acredita que a equipe do Bukele captou essa tendência, e ele entregou o que a população queria.
Carlos Monterrosa: Bukele le tiene algo que ofrecer y hay una demanda de gente que está dispuesta a comprar algo así.
Ana Luiza Albuquerque: Por isso o governo instituiu o regime de exceção. E apesar de todas as consequências negativas, a população o apoiou.
Em setembro de 2020, o El Faro, o principal jornal investigativo da América Central, noticiou com br em informes de inteligência penitenciária que o Bukele tinha feito um pacto com a MS-13, a maior gangue do país. Um ano depois, os repórteres tiveram acesso a uma investigação da Procuradoria-Geral da República que reforçava a acusação contra o Bukele.
O material mostrava que desde junho de 2019, quando o presidente tomou posse, funcionários de alto escalão do governo vinham se reunindo na cadeia com líderes da gangue. O El Faro publicou fotos deles com homens encapuzados dentro das prisões e de um caderno com exigências dos presos.
Nesses encontros secretos, eles teriam firmado o tal pacto. Segundo as investigações, o governo prometeu benefícios carcerários, tipo a venda de pizza nas prisões e a transferência de criminosos que os pandilleros consideravam muito agressivos. As autoridades também teria prometido afrouxar o regime de segurança máxima. Em troca, os líderes da MS-13 teriam garantido que a violência entre as gangues ficaria sob controle.
De acordo com as investigações, o objetivo de Bukele com esse pacto era reduzir o índice de homicídios, o que de fato aconteceu no ano seguinte. Os pandilleros também teriam prometido apoiar o Nuevas Ideas, partido do presidente, nas eleições legislativas de 2021.
O governo nega ter feito qualquer acordo com as gangues. Depois da primeira reportagem publicada pelo El Faro, Bukele escreveu no Twitter: Nos acusam de violar os direitos humanos dos terroristas. Agora dizem que demos privilégios a eles? Me mostrem um privilégio. Um só.
Carlos Monterrosa: Entonces es como decir se están jugando como en dos niveles, en dos pistas.
Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Carlos Monterrosa, cientista político, outra vez. Ele diz que o populismo penal atinge certos grupos e as pessoas em geral o apoiam enquanto elas não são diretamente afetadas. Enquanto isso, tem acordos por baixo dos panos que favorecem as lideranças das gangues.
Carlos Monterrosa: Por otro lado hay acuerdos debajo de la mesa que pueden favorecer a ciertos liderazgos dentro de estructuras criminales, de la estructura de las pandillas.
Ana Luiza Albuquerque: Esse tipo de acusação não era exatamente uma novidade. O ex-presidente Mauricio Funes, que governou El Salvador até 2014, foi condenado a 14 anos de prisão por ter negociado a redução de homicídios em troca de benefícios para as gangues.
Em dezembro de 2021, uma investigação do Departamento de Tesouro dos Estados Unidos confirmou as informações divulgadas pelo El Faro sobre a gestão Bukele. Com um acréscimo importante: eles concluíram que o governo também tinha dado incentivos financeiros para a MS-13 e para a Barrio 18, para garantir que a violência ficaria sob controle.
O suposto pacto também estava sendo investigado pela Procuradoria Geral da República de El Salvador. Mas em fevereiro de 2021 as eleições legislativas deram ampla maioria para o partido do Bukele. E, em maio, o Congresso tirou o PGR do cargo e afundou a investigação.
O acordo entre o governo e os criminosos teria ficado de pé por três anos, até que tudo mudou em março de 2022. Do dia 25, uma sexta-feira, ao dia 27, um domingo, a MS-13 matou 87 pessoas.
[reportagem Telemundo] Te cuento que poco a poco la normalidad ha regresado al país. Imagina-te, más de 80 asesinatos en 72 horas.
Ana Luiza Albuquerque: A maioria não tinha vínculo com nenhuma gangue. Só no sábado morreram 62: foi o dia mais violento do século em El Salvador.
O El Faro noticiou que, antes do massacre, policiais tinham capturado um veículo com líderes da MS-13. A gangue deu um ultimato de 72 horas para que eles fossem liberados, o que a polícia não cumpriu. Como represália, a MS-13 matou dezenas de pessoas. O diálogo com o governo tinha acabado.
Em meio à escalada da violência, Bukele pediu que o Congresso aprovasse o regime de exceção, o que aconteceu no próprio dia 27.
O regime suspendeu garantias constitucionais, como os direitos de ser informado sobre os motivos de uma prisão e de ser apresentado a uma autoridade judicial em até 72 horas. Na prática, as pessoas estão sendo detidas sem ordem judicial. As famílias têm muita dificuldade de conseguir informações sobre o paradeiro dos presos, ou mesmo de saber do que eles estão sendo acusados.
Blanca Rivera: Pues ya tenemos un año con dos meses casi y no dan ninguna información.
Ana Luiza Albuquerque: Essa é a Blanca Rivera, uma mulher que eu encontrei numa visita a um grupo de advogados que atende gratuitamente vítimas desse estado de exceção. Ela foi lá para pedir ajuda com o caso do marido. Ele estava preso há mais de um ano, desde julho de 2022, e a família não conseguia informações nem sobre o estado de saúde dele.
Blanca Rivera: Uno va a los penales, no les dicen bueno, está vivo o está enfermo, no dicen nada. Y es cosa, pues, injusta lo que nos está pasando.
Ana Luiza Albuquerque: O José Antônio, marido da Blanca, e o irmão dela trabalhavam como taxistas. No dia 7 de julho de 2022, às 11 e meia da manhã, ela recebeu uma ligação do irmão. Ele disse: fala com o seu marido, porque a polícia tá com ele.
Blanca Rivera: Mi esposo es taxista y allí trabajaba mi hermano también, trabaja. Como a las 11:30 me habló él y me dice mira, me dice, háblale a tu esposo porque está con la policía.
Ana Luiza Albuquerque: A Blanca tentou ligar para o marido, mas ele não atendeu.
Ela e o filho foram de delegacia em delegacia tentando encontrar o José. Depois ela descobriu que ele tinha sido acusado de algo como associação criminosa, ou seja, de fazer parte de uma gangue. A Blanca diz que não entende o que aconteceu, porque o marido sempre foi um homem trabalhador e deu um bom exemplo para os filhos.
Blanca Rivera: Yo le dije explíqueme porque él está detenido, porque mi esposo es él es un hombre trabajador, a mis hijos todo el tiempo les dio buen ejemplo.
Ana Luiza Albuquerque: Segundo ela, os salvadorenhos não têm mais direitos, e inocentes estão morrendo nas prisões como se fossem animais.
Blanca Rivera: Y esa es la pena que uno siente como familia, que mueren, como que muriera cualquier animal.
Ana Luiza Albuquerque: Tem muitos relatos de tortura e mortes nas prisões. A ONG Cristosal documentou que, um ano depois do começo do regime, 132 pessoas tinham morrido nos presídios. A Anistia Internacional, que acompanhou 10 desses casos, diz que as principais causas das mortes foram a tortura e a falta de acesso à saúde. Algumas pessoas em liberdade condicional disseram que viram policiais matando outros presos a golpes, por castigo ou para pressioná-los a confessar que faziam parte de alguma pandilla.
Pouco mais de um ano depois da aprovação do regime de exceção, o governo já tinha prendido mais de 70 mil pessoas. 7.000 foram soltas depois de passar meses na prisão. Isso quer dizer que 2% da população acima de 18 anos estava presa. No Brasil, essa proporção é de meio por cento.
Marvin Reyes: Esto se dio porque en la policía empezaron a exigir cuotas de detenidos por día.
Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Marvin Reyes, secretário de um grupo sindical da polícia. Ele diz que uma semana depois de o regime ser instalado, a chefia da polícia começou a exigir dos batalhões uma cota nacional de 1.000 detenções diárias. O Marvin diz que cada policial tinha que prender duas ou três pessoas por dia.
Marvin Reyes: Ellos tenían la obligación, prácticamente obligados a capturar dos o tres personas por día.
Ana Luiza Albuquerque: Segundo o Marvin, como muitos integrantes das gangues já tinham fugido do país, os policiais começaram a prender inocentes para bater a meta. Ele fala que a polícia escolhe aqueles que têm um perfil considerado suspeito: quem tava bebendo na rua, aparentava estar desocupado, tinha tatuagem.
Marvin Reyes: Y seguían los policías en la calle buscando y al final decían bueno, nos vamos a llevar este que parece pandillero, verdad? Anda tatuado y anda peludo parece pandillero, lo vamos a llevar.
Ana Luiza Albuquerque: O Marvin também conta que pessoas inocentes estão morrendo nos presídios, com sinais de tortura –fraturas no pescoço, nos braços e nas costelas.
Marvin Reyes: Han salido muertos de ahí con señales de tortura, com señales de haber recibido golpizas, con fractura de cuello, fractura de brazos, costillas.
Ana Luiza Albuquerque: No começo de 2023, Bukele inaugurou um megapresídio com capacidade para 40 mil pessoas. O governo disse que a nova prisão era a maior das Américas. Na esteira do regime de exceção, o Congresso também aprovou outras medidas que dificultam o direito à defesa.
[reportagem AFP] O Congresso de El Salvador aprovou na noite de quarta-feira que acusados de participarem de gangues, as chamadas pandillas, sejam julgados coletivamente, o que vai fazer com que grupos de até 900 réus enfrentem um mesmo julgamento.
Ana Luiza Albuquerque: O governo diz que os homicídios caíram mais de 50% em 2022 em relação ao ano anterior. Não dá pra confiar totalmente nesses números, e algumas organizações apontaram que eles estavam errados. Mas fato é que a violência das gangues diminuiu de forma significativa e isso é percebido pela população –mesmo que a violência do Estado tenha crescido. Por isso, o Bukele virou uma referência entre políticos na América Latina, especialmente os conservadores.
Deputado federal Ubiratan Sanderson: Nós tendo conhecimento do êxito, do caso de sucesso apresentado por El Salvador…
Ana Luiza Albuquerque: Esse é o deputado federal Sanderson, do PL, que na época era presidente da Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados.
Deputado federal Ubiratan Sanderson: ...Temos a honra então agora de ouvir sua excelência, o ministro da Justiça de El Salvador, Gustavo Villatoro. Seja muito bem vindo, ministro.
Ana Luiza Albuquerque: O ministro Gustavo Villatoro participou por chamada de vídeo de uma reunião da comissão no dia 23 de maio de 2023. A apresentação dele foi basicamente uma propaganda das medidas de segurança do governo Bukele. O Villatoro tinha sido convidado pelo deputado federal Osmar Terra, do MDB, ex-ministro da Cidadania do governo Jair Bolsonaro.
Deputado federal Osmar Terra: Veja essa maravilha dessa aula que o ministro Gustavo Villatoro nos deu.
Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Osmar Terra falando depois da apresentação do ministro.
Deputado federal Osmar Terra: É a primeira vez que eu vejo um país concretamente resolver esse problema. E resolver em 4 anos, não é em 10 anos, 20 anos, 30 anos. Resolver em 4 anos. Ah mas prenderam, tem uma lei de exceção. Isso é temporário, é necessário, tem que ser feito quando é necessário. Nós estamos salvando vidas, não estamos passando a mão na cabeça de criminoso.
Jair Bolsonaro: A partir do momento que eu entro no excludente de ilicitude ao defender a minha vida ou de terceiros, a minha propriedade ou de terceiros, o meu patrimônio ou de terceiros, a violência cai assustadoramente. Os caras vão morrer na rua igual barata, pô, e tem que ser assim.
Ana Luiza Albuquerque: Esse discurso punitivista foi muito ouvido no governo Bolsonaro, mas faz parte de um fenômeno maior.
Renato Sérgio de Lima: Talvez a grande ferramenta de poder dos autocratas seja a exploração do medo e da insegurança.
Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Renato Sérgio de Lima, diretor do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Renato Sérgio de Lima: A gente tem em alguns lugares a apropriação das instituições policiais por um discurso autocrático, que é "vamos resolver o problema". Como que a gente resolve o problema? Eliminando o inimigo.
Ana Luiza Albuquerque: O Renato diz que em nações democráticas as conquistas na segurança costumam levar mais tempo e as mudanças são mais complexas. Os autocratas, por outro lado, oferecem soluções que parecem simples e rápidas e que agradam a população que está insatisfeita e com medo. Assim eles conseguem ganhos quase instantâneos de popularidade.
Renato Sérgio de Lima: Na cabeça da população, cuja ameaça de morte é real e imediata, ou seja, se eu sair na rua, eu posso ser morto por uma bala perdida, por um tiroteio e eu posso ter meu celular roubado de forma violenta a qualquer momento, eu posso até concordar que a desigualdade é a razão primeira da violência, mas não estou nem aí para isso. Eu quero uma solução.
Então a gente percebe por que o Bukele conseguiu tamanho protagonismo, porque ele chegou e fez um discurso num país com uma institucionalidade baixa, um país com instituições frágeis, um país pequeno, portanto, não sujeito às regras de freios e contrapesos de uma federação mais complexa, e um país historicamente dominado pela lógica do crime organizado, pelas facções.
Ana Luiza Albuquerque: Só que além de corroer a democracia ao destruir garantias legais, esse tipo de solução defendida pelo Bukele não é sustentável a longo prazo. Primeiro, o estado vai ter que continuar botando muito dinheiro para manter essa estrutura repressiva. Segundo, o volume de prisões pode acabar afetando até a demografia do país.
Renato Sérgio de Lima: Isso só se mantém se você continuar mantendo o regime de exceção, porque ele é uma construção artificial.
El Salvador não vai conseguir resolver o seu problema simplesmente prendendo a maior parte da sua população jovem. O que vai acontecer? Vai ter uma questão até demográfica num país pequeno. Vai faltar mão de obra. Ele vai passar a atrair gente dos países vizinhos. Ele vai começar a ter que ter trabalhador para poder manter a economia rodando.
Ana Luiza Albuquerque: O Marvin Reyes, secretário do sindicato da polícia em El Salvador, quer o fim do regime de exceção. Ele diz que o regime não é uma política pública, mas uma medida emergencial para retomar o controle do território.
Marvin Reyes: Es una herramienta para restablecer el control que en determinado momento se ha perdido.
Ana Luiza Albuquerque: O Marvin defende a criação de um plano de segurança permanente, que não dependa do presidente que está no poder.
Ele também critica o governo por usar o regime como uma ferramenta de chantagem eleitoral.
Marvin Reyes: O sea, es un chantaje que le hacen a la población.
Ana Luiza Albuquerque: Os apoiadores de Bukele espalharam a ideia de que, se ele não fosse reeleito, a medida iria acabar e as gangues iriam voltar.
Marvin Reyes: La gente lo cree y dicen no, es cierto, mejor que sigan ellos, porque así mantienen el régimen y nosotros estamos contentos.
Ana Luiza Albuquerque: Em El Zonte, um paraíso do surfe a uma hora da capital, Mario Garcia e a esposa dele são figuras conhecidas. Tem 5 anos que ele trabalha na praia vendendo minutas –ou, em português, raspadinhas. Por isso ele ficou bem surpreso com a abordagem da polícia na praia, às 8 da manhã de uma segunda-feira, em abril de 2022. Ele estava indo buscar gelo, quando foi parado pela polícia, que disse pra ele não se mexer.
Mario García: Entonces estaba bajando yo todavía hielo, me faltaba hielo. Me dijeron venite ahí, quédate, no te muevas.
Ana Luiza Albuquerque: O Mario conta que foi detido naquele esquema: prende antes e investiga depois. Segundo ele, as tatuagens o colocaram na mira da polícia. Elas são símbolos muito associados às gangues na América Latina, e por isso costumam acender um sinal de alerta. O Mario diz que nos anos 90, antes de casar, ter filhos e virar vendedor de minutas, ele assaltava —mas que nunca fez parte de nenhuma pandilla.
Mario García: Pero no, andar con bichos locos ahí jodiendo, no, no, eso nunca me gustó a mí.
Ana Luiza Albuquerque: Essa poderia ser mais uma história sobre alguém detido injustamente em meio ao regime de exceção. Mas é mais do que isso —e vai ajudar a gente a entender outra faceta do Bukele.
El Zonte é também conhecida como Bitcoin beach, porque foi uma espécie de laboratório da criptomoeda, uma das principais apostas do presidente. E o Mario foi um dos primeiros vendedores a aceitar pagamento com bitcoin.
Ele virou um símbolo da cripto, aparecendo em vídeos nas redes sociais e em reportagens.
Mario García: Sí, digamos que la gente me paga en bitcoin, que fue el primero acá.
Ana Luiza Albuquerque: Eu vejo a história do Mario como um furo na fantasia que o Bukele criou ao adotar o bitcoin como uma moeda oficial do país.
Nayib Bukele: So we were thinking of building bitcoin city.
Ana Luiza Albuquerque: Por trás da criptomoeda, das promessas de inovação, competência, tecnologia, de todo esse aparato de marketing que o Bukele construiu, está a realidade de gente que sofre muito na mão do governo.
O Mario ficou detido por 24 dias e conta que foi torturado na prisão.
Mario García: Me rompieron las costillas por aquí, puro leñazo. Tenía como unos ocho leñazos aquí. Me quebraron las costillas.
Ana Luiza Albuquerque: Ele diz que levou mais de 8 golpes e que teve as costelas quebradas.
Mario García: No, si, me dejaron bien vergueado.
Ana Luiza Albuquerque: Como o Mario era muito conhecido na praia, a vizinhança se mobilizou e criou uma campanha nas redes para que ele fosse solto. A prisão dele no paraíso do bitcoin não encaixou bem com os planos do governo para a região.
Nelson Rauda: Esto se llama el Zonte. Y los entusiastas de las criptomonedas salvadoreños pero predominantemente extranjeros le dicen a esto Bitcoin beach.
Ana Luiza Albuquerque: Aqui de novo é o Nelson, meu amigo que é jornalista em El Salvador. Eu fui com ele para El Zonte pra ver de perto onde começou o bitcoin no país. O lugar é uma cidade de praia tranquila, com alguns bares e restaurantes, mas sem muita agitação. Ela atrai principalmente surfistas estrangeiros. Alguns comércios têm o símbolo do bitcoin do lado de fora, um B num círculo laranja, para dizer que a criptomoeda é aceita ali.
Nelson Rauda: Aquí empezó una especie de experimento en laboratorio y ellos les gusta llamarle una economía circular.
Ana Luiza Albuquerque: Em 2019, ainda antes de o Bukele se eleger, um surfista americano que morava em El Zonte disse que recebeu uma doação anônima de mais de 100 mil dólares em bitcoins para investir na região. O objetivo era criar uma economia local da criptomoeda. Ninguém nunca descobriu exatamente por que —nem quem foi esse doador. O Nelson diz que tudo que envolve o bitcoin no país é pouco transparente.
Nelson Rauda: Ya que, como con todo lo que es Bitcoin en este país, hay muy poca transparencia.
Ana Luiza Albuquerque: Em pouco tempo os moradores da praia passaram a receber salários e pagar despesas com bitcoin. Mas a coisa atingiu outro patamar quando Bukele assumiu a Presidência e decidiu se envolver diretamente com a causa.
Em maio de 2021, irmãos do presidente fizeram reuniões com um empresário de criptomoedas de El Zonte. Um mês depois, o Congresso aprovou a lei bitcoin –a pedido de Bukele.
[reportagem AFP] O bitcoin será uma moeda de curso legal em El Salvador. O congresso aprovou na madrugada desta quarta-feira uma lei que tornará este país centro-americano o primeiro a adotar a criptomoeda com a qual busca impulsionar sua economia.
Nayib Bukele: The bitcoin system is so perfect that I think it's gonna be the future.
Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Bukele em uma entrevista com um influenciador de criptomoedas americano em 2021. Ele diz que o sistema de bitcoin é perfeito e que a moeda representa o futuro. O governo fez muita propaganda da criptomoeda, investiu milhões de dólares em bitcoin e criou uma carteira digital, a Chivo. Mas o esforço foi em vão. Os salvadorenhos não entraram nessa onda.
Nelson Rauda: Esta medida ha sido el fracaso más grande del presidente Bukele, porque la gente no lo adoptó.
Ana Luiza Albuquerque: O Nelson diz que a medida foi o maior fracasso do governo. A Chivo não funcionava direito, muita gente acabou perdendo dinheiro e as pessoas não confiavam na moeda.
Nelson Rauda: Entonces la gente de por sí le perdió confianza, algo que ya era bastante difícil de confiar.
Ana Luiza Albuquerque: A criptomoeda também despencou de valor, enquanto o país está afundado em dívidas, a ponto de pedir socorro para o Fundo Monetário Internacional.
Mas por que o governo apostou tão alto no bitcoin?
De acordo com o Nelson, essa foi uma estratégia para retomar o controle da narrativa em um momento crítico. Ele diz que o Bukele anunciou a lei bitcoin um dia depois de encerrar um acordo com uma comissão de combate à corrupção da OEA, a Organização dos Estados Americanos.
Um mês antes, o Congresso dominado pelos apoiadores do governo tinha removido juízes da Suprema Corte e retirado o PGR do cargo.
O Nelson acredita que essa história de bitcoin era uma cortina de fumaça contra as acusações de que o Bukele era um autoritário que tinha rompido promessas de combate à corrupção. Era uma oportunidade de criar a imagem de um presidente moderno, descolado…
Nelson Rauda: …Audaz, inovador, cool, tecnológico, visionário, el futuro.
Ana Luiza Albuquerque: A adoção do bitcoin também tem muito a ver com a estratégia do Bukele de se apresentar como uma espécie de CEO do país. Enquanto eu fazia as entrevistas desse episódio, eu lembrei de um livro que eu tinha lido pouco tempo antes, chamado Spin Dictators, ou "ditadores marqueteiros". Ele fala de uma mudança no perfil dos autocratas no século 21. Antes, eles dominavam por meio da violência e do medo. Hoje, eles apostam na manipulação e tentam parecer competentes.
O Nelson diz que a popularidade do Bukele passa por essa imagem que ele vende de si: um empresário bem-sucedido, cool, viril e contundente. Independentemente do desempenho econômico do país, muitos salvadorenhos se inspiram nele.
Nelson Rauda: El salvadoreño quiere llegar a ser como él, quiere mandar y quiere por Twitter ordenar, quiere que se le haga caso, quiere ser popular, quiere ser cool, quiere tener dinero.
Ana Luiza Albuquerque: A primeira grande exibição do autoritarismo do Bukele se deu no dia 9 de fevereiro de 2020, um ano depois da eleição. Naquele dia, ele entrou no Congresso com policiais e militares, como forma de pressionar os deputados. Ele ainda não tinha maioria no Legislativo.
[reportagem Band] Nayib Bukele foi escoltado por homens armados e se sentou na cadeira do presidente do Congresso. Ele fez uma oração e mesmo sem quórum ordenou o início da sessão. Na saída foi recebido por uma multidão de simpatizantes. Ele deu um ultimato de uma semana para que deputados liberem o equivalente a 470 milhões de reais para um programa anti-crime.
Ana Luiza Albuquerque: Eu falei sobre esse episódio com Anabel Belloso, uma deputada do FLMN, partido de esquerda do país.
Anabel Belloso: Pero ni siquiera creo yo que en los años de la dictadura militar ni en el conflicto armado se dio esa escena. Entonces fue terrible.
Ana Luiza Albuquerque: Ela conta que três dias antes dessa cena o Bukele tinha pedido para os deputados discutirem e votarem a liberação da verba. Segundo ela, foram dias tensos. Policiais à paisana foram até a casa dos parlamentares para pressioná-los a ir à Assembleia. A deputada diz que tinha uma mensagem implícita nessas visitas: Se você não aparecer na votação, a gente vai te levar à força.
Anabel Belloso: Y era como mensaje: "Mira, si no te presenta el nueve a la convocatoria, te vamos a venir a traer por apremio".
Ana Luiza Albuquerque: A Anabel vê naquele momento o começo da escalada no autoritarismo no país. E isso ganhou força depois das eleições legislativas de 2021, quando Bukele passou a contar com ampla maioria no Parlamento.
Anabel Belloso: A partir de ese momento ya empieza todavía más la escalada de acciones, de autoritarismo, de afán de concentración de poder, de violación a la transparencia.
Ana Luiza Albuquerque: Em maio de 2021 o Congresso fez uma grande reforma judicial para favorecer o presidente. Os deputados tiraram do cargo os cinco ministros da Câmara Constitucional da Suprema Corte. E colocaram no lugar deles juízes alinhados ao presidente. Eles também afastaram o Procurador-Geral da República.
[reportagem TV Cultura] Por aqui a decisão foi elogiada pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, afirmando com um post no Twitter que a decisão foi constitucional.
Ana Luiza Albuquerque: O cientista político Carlos Monterrosa, da Universidade Centro-Americana, diz que os juízes afastados também começaram a ser monitorados pela polícia.
Carlos Monterrosa: Andar monitoreando a través de policías donde andaban estas personas, que estaban haciendo.
Ana Luiza Albuquerque: E que isso mostrava que Bukele não é uma pessoa que dialoga e que entende que podem existir diferenças de pensamento.
Carlos Monterrosa: Nos empezaba a dar las muestras de que Bukele no está, no es una persona que dialoga, no es una persona que conserta, que busca mecanismos democráticos.
Ana Luiza Albuquerque: O Carlos diz que o Bukele não queria reconhecer as decisões da Suprema Corte. E por isso a primeira coisa que ele fez foi dissolvê-la, e afastar também o Procurador-Geral.
Carlos Monterrosa: Él no quería reconocer decisiones de la Asamblea ni tampoco de la sala de lo constitucional de aquel momento. Por eso lo primero que hizo fue disolver.
Ana Luiza Albuquerque: O Congresso de maioria governista também aposentou compulsoriamente todos os juízes com mais de 60 anos –que àquela altura eram um terço dos magistrados do país. Além disso, juízes foram transferidos de vara sem muita explicação.
Esse foi o caso da Cesia Romero, uma juíza de segunda instância que atuava na única vara nacional de meio ambiente. Ela conta que em setembro de 2021 recebeu um recado da Suprema Corte para se apresentar no dia seguinte em outro tribunal. Ela tinha sido transferida para uma vara cível a mais de uma hora de distância da capital. Sem nenhuma justificativa.
Cesia Romero: No, no, nunca se dio ninguna razón del por qué.
Ana Luiza Albuquerque: A Cesia acha que foi removida do cargo porque a questão ambiental é muito sensível para o governo e o presidente quer juízes alinhados a ele.
Cesia Romero: No les interesa tener gente que sea independiente.
Ana Luiza Albuquerque: Ela conta que muitas vezes tinha que suspender projetos dos municípios ou mesmo do Ministério do Meio Ambiente por causa de irregularidades.
Além disso, a Cesia já tinha criticado publicamente a reforma judicial, o que ela acha que pode ter contribuído para a transferência. Ela diz que qualquer ponto de vista diferente é mal visto pelo governo.
Cesia Romero: Cualquier desacuerdo, cualquier punto de vista disidente es mal visto.
Ana Luiza Albuquerque: A Cesia diz que muita gente não vê o Bukele como totalitário porque o Estado não chega ao ponto de matar jornalistas e juízes. Mas para ela o governo encontrou formas mais modernas de calar as críticas e concentrar o poder.
Cesia Romero: Hay maneras modernas de poder también causar la misma situación.
Ana Luiza Albuquerque: Os novos juízes da Suprema Corte, indicados pelo Congresso governista, decidiram em setembro de 2021 que o Bukele poderia disputar de novo a Presidência. Os magistrados contrariaram a Constituição, que proíbe a reeleição imediata.
Com essa permissão, Bukele foi reeleito em fevereiro desse ano com quase 85% dos votos.
Nayib Bukele: Este día El Salvador ha roto todos los récords de todas las democracias en toda la historia del mundo.
Ana Luiza Albuquerque: Em agosto, seis meses antes das eleições, eu conversei com o Luis Parada e a Celia Medrano, do partido de centro Nuestro Tiempo —ele candidato a presidente e ela, a vice. Os dois insistiram na mesma ideia: de que aquela talvez fosse a última chance de barrar o autoritarismo no país.
O Luis Parada vive nos Estados Unidos e afirmou que não teria se candidatado se a ameaça de Bukele não fosse tão grande. Ele diz que a democracia salvadorenha está em crise, e que por isso pessoas corajosas precisam participar do processo eleitoral.
Luis Parada: Es un momento de crisis, un momento de crisis no solo para el sistema político, sino para la democracia en el país.
Ana Luiza Albuquerque: A Celia Medrano chamou a reeleição do Bukele de ilegítima e, alguns meses antes do pleito, previu um cenário preocupante. Ela disse que, se ele continuasse no poder, o autoritarismo escalaria muito rápido.
Celia Medrano: Nos llevaría de manera muy acelerada, como ya estamos viviendo a escenarios como Nicaragua, por ejemplo.
Ana Luiza Albuquerque: Ela comparou o que acontece em El Salvador com o avanço da ditadura do Daniel Ortega, que está no poder há 17 anos na Nicarágua. Só que, para ela, com a reeleição do Bukele, esse processo vai ser bem mais rápido.
Celia Medrano: La situación aún empeorará definitivamente más.
Ana Luiza Albuquerque: Durante a viagem eu ouvi muitas vezes esse alerta sobre El Salvador estar seguindo o mesmo caminho da Nicarágua.
Locutora: De la consolidación de un régimen político autoritario, autocrático y dictatorial de la familia Ortega Murillo.
Ana Luiza Albuquerque: Era 18 de agosto de 2022 e eu estava num Uber, indo para uma entrevista em San Salvador. No dia anterior, Ortega tinha confiscado os bens da Universidade Centro Americana, uma das principais do país. A âncora do programa de rádio começou a falar sobre a ditadura na Nicarágua. Depois, passou a criticar o autoritarismo do próprio Bukele.
Os jornalistas em El Salvador ainda têm liberdade para fazer esse tipo de crítica, mas sofrem assédios e ameaças. A gestão Bukele barra o acesso a informações públicas e impede que repórteres de alguns veículos, como o El Faro, participem de entrevistas coletivas com representantes do governo. E alguns jornalistas, como você ouviu no primeiro episódio, chegaram a ter os telefones monitorados. Vários já deixaram El Salvador em meio a esse contexto.
Locutora: Cuando hablo por ejemplo del gobierno de El Salvador, cuando digo que el régimen de Nayib Bukele es un gobierno totalitario y autoritario, que tiene rasgo de dictadura…
Ana Luiza Albuquerque: O Bukele acabou de ser reeleito. As pessoas têm medo do que pode acontecer, mas não dá para adivinhar o quanto a situação pode piorar em El Salvador. O que dá para fazer é observar o que aconteceu em outros países que não conseguiram parar o autoritarismo. No próximo episódio, eu vou te detalhar o caso da Nicarágua, e contar como Daniel Ortega passou de guerrilheiro a ditador.
Daniel Ortega: Y que ahora que salieron los golpistas, los mercenarios, bueno, respiramos aquí en Nicaragua. Gracias a Dios. Y que viva Nicarágua, bendita y siempre libre.
Ana Luiza Albuquerque: Eu sou Ana Luiza Albuquerque, responsável pela apresentação, roteiro, produção e reportagem do Autoritários. O Nelson Rauda colaborou na produção e reportagem deste episódio.
A edição de som é do Raphael Concli e da Laila Mouallem. A coordenação é da Magê Flores e do Daniel Castro, a produção no roteiro é do Victor Lacombe e a supervisão dele é do Gustavo Simon. A identidade visual é da Catarina Pignato.
Esse episódio usou áudios da AFP, TV Globo, Alfa Produções, Telemundo, TV Câmara, Leda Nagle, Associated Press, What Bitcoin Did, Band, TV Cultura e El País. E dos artistas Pedro Movaz, Scarred.es, Mc Benny e Angy MC e Edgar Reg.
Até semana que vem.