Dia e noite, noite e dia, aeronaves pousam e decolam em pistas clandestinas que abastecem o garimpo ilegal na comunidade Waikás, na Terra Indígena Yanomami, em Roraima. Nos meses de janeiro e fevereiro de 2018, entre as diversas aeronaves e helicópteros avistados sobrevoando a região, estava o avião de prefixo PT KEM, que nesta época era de propriedade do senador Chico Rodrigues (DEM-RR) – entusiasta declarado do garimpo e que em outubro do ano passado foi flagrado pela Polícia Federal tentando esconder R$ 33 mil na cueca, durante operação em sua casa, em Boa Vista.
Informações de que esta aeronave entrou diversas vezes no território constam em quatro denúncias feitas por movimentos indígenas à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal em Roraima entre 2018 e 2019, obtidas pela Repórter Brasil.
O avião pertenceu ao senador e ex-governador do Estado no período de 13 de junho de 2011 a 28 de fevereiro de 2018, de acordo com certidão de propriedade e ônus reais, obtida pela reportagem junto à Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).
Procurado, o senador Chico Rodrigues afirmou que “à época dos fatos narrados, já havia transferido a posse [do avião]”, porém não enviou documentos que comprovassem a informação. Disse ainda, por meio de sua assessoria de imprensa, que no período em que de fato tinha a posse “não realizou qualquer voo em região de garimpo ilegal”. Leia aqui o posicionamento na íntegra.
No entanto, documento da Anac mostra que a transferência da propriedade aeronave foi realizada em 2 de março de 2018, depois, portanto, das denúncias feitas pelos movimentos indígenas e desta aeronave ter sido vista sobrevoando garimpos.
A Polícia Federal não quis dar informações sobre o andamento das denúncias, alegando apenas que “não se manifesta acerca de eventuais investigações em andamento.” O MPF em Roraima informou que está atuando “em mais de um procedimento sobre as denúncias citadas e que aguarda a conclusão das investigações, e o levantamento do material probatório necessário, para tomar as medidas judiciais cabíveis.”
O movimento indígena também encaminhou as denúncias ao Ministério da Defesa, à Funai, ao ICMBio, à 1ª Brigada de Infantaria de Selva e ao 1º Batalhão de Infantaria da Selva do Exército, os dois últimos subordinados ao Comando Militar da Amazônia. A reportagem procurou essas instituições, mas só o Ministério da Defesa respondeu. Em nota, disse que: “a competência para tratar assuntos relativos à invasão de terras indígenas é da Fundação Nacional do Índio (Funai) e da Polícia Federal, que poderão articular ações com os órgãos de segurança pública estaduais. O Ministério e as Forças Armadas poderão contribuir com os referidos órgãos, se houver necessidade e mediante solicitação de apoio.”
Segundo uma das denúncias dos indígenas, a chamada “pista clandestina 4”, que fica a 3 minutos de caminhada do rio Auaris, é o principal local de pouso das aeronaves, que transportam os garimpeiros e seus equipamentos, além de “combustível para as balsas que ficam na boca do rio”. Um dos pousos do avião que pertencia ao senador foi justamente nesta pista: “A aeronave PT KEM pousou em fevereiro [de 2018] neste local”, diz um dos documentos produzido pelos indígenas.
Outro trecho das denúncias diz que: “Apesar de reiteradas denúncias feitas anteriormente, com informações detalhadas sobre a operação irregular de aeronaves da TIY [Terra Indígena Yanomami], inclusive da aeronave PT-KEM, o que se constata é que estas continuam operando clandestinamente na TIY sem maiores constrangimentos.”
Garimpo ‘fabuloso’
O senador não esconde ser um entusiasta do garimpo, sendo que não há atualmente uma legislação regulamentando essa atividade em território indígenas. Em janeiro de 2020, Rodrigues visitou um dos garimpos ilegais na TI Raposa Serra do Sol, também em Roraima, onde gravou um vídeo dizendo que o garimpo no local era um “trabalho fabuloso” e que acontecia “sem danos ambientais”. Matéria publicada pela Folha de S.Paulo em março mostrou que esse garimpo ilegal apoiado pelo senador continua crescendo de forma descontrolada, a tal ponto que os indígenas recorreram à ONU.
“Precisamos logo que o governo, que o Congresso Nacional principalmente, regulamente logo essa questão da exploração mineral em terras indígenas”, diz Rodrigues no vídeo. À Repórter Brasil, por email, ele disse que “apoia uma possível regularização do garimpo sustentável exclusivamente com lideranças indígenas, como legítima atividade profissional, desde que regulamentada e fiscalizada pelo poder público.”
Mas a influência política do senador e ex-governador em questões ligadas a indígenas no estado vai além do garimpo. Em outubro do ano passado, o jornal Valor revelou que em 2019 o senador indicou Vitor Pacarat para a coordenação do Distrito Sanitário Especial Indígena Leste (Dsei), em Roraima. As investigações da Polícia Federal indicam que, em meio à pandemia da covid-19, Rodrigues, por meio de empresas de familiares e aliados, passou a fornecer equipamentos de proteção individual e testes superfaturados ao Dsei Leste, na época comandado por Pacarat.
A Justiça então autorizou a operação da PF que acabou flagrando o senador com dinheiro na cueca. A investigação tem como foco a formação de uma organização criminosa para desviar verbas destinadas à saúde do estado de Roraima. Rodrigues é suspeito de fraude, dispensa de licitações indevida, peculato (quando um funcionário público desvia ou se apropria de bens) e de integrar organização criminosa para desviar recursos federais destinados ao combate da pandemia.
A operação da PF ocorreu quando ele era vice-líder do governo Bolsonaro no Senado, cargo para o qual foi indicado em março de 2019. Rodrigues negou irregularidades e afirmou que o dinheiro seria usado para pagar funcionários. O senador, que retomou seu mandato em fevereiro após uma licença de quatro meses, segue sendo investigado. Ele já havia sido afastado de um cargo público, quando foi governador de Roraima e teve seu mandato cassado pelo TRE por suspeita de gasto ilícito.
Além do dinheiro escondido, a PF também encontrou na casa do senador uma pedra cuja suspeita é a de ser uma pepita de ouro.
Multa de R$ 1 milhão
“O Estado brasileiro, a nível federal e local, falha, até de maneira proposital, no combate ao garimpo ilegal”, afirma Alisson Marugal, procurador do Ministério Público Federal (MPF) em Roraima. “O governo federal tem um discurso pró garimpo, tanto é que há um projeto de lei para legalizar garimpo em terra indígena. Então tem muito garimpeiro que vai para terra indígena achando que vai ser legalizado”, afirma. O procurador refere-se ao PL 191/2020, que libera a mineração e o garimpo em terras indígenas.
Marugal explica que hoje tramitam na Agência Nacional de Mineração cerca de 700 requerimentos para mineração em terras indígenas em Roraima. “O fato de ter requerimentos e nenhuma interferência da agência é um estímulo à mineração. Nosso receio é o de que essa expectativa gere aumento da prática ilegal do garimpo”.
Uma das comunidades mais atingidas pelo garimpo é a Kayanaú, afirma o procurador do MPF. De acordo com relatório obtido por ele e disponibilizado para a reportagem, nesta região, haveria 1.600 garimpeiros. “Eles [indígenas] estão sofrendo de maneira intensa. Há impactos ambientais, culturais. É uma situação horrível”.
O descontrole é tamanho que, em abril do ano passado, Marugal entrou com uma ação civil pública contra a União, Funai, Ibama e ICMBio para apresentação de plano emergencial para monitoramento da terra indígena Yanomami e retirada de garimpeiros. Em julho, o Tribunal Regional Federal acatou o pedido. “Mas a União se nega a cumprir”, afirma o procurador, que no dia 5 de fevereiro expediu um pedido de multa por não cumprimento da decisão.
Na última terça (16), a Justiça determinou que a União retire os garimpeiros da terra Yanomami e apresente um plano de ação não apenas para realizar a retirada, mas para que se crie condições monitorar a área indígena e, assim, evitar que os invasores voltem. Se a medida não for cumprida pelas instituições citadas em 10 dias, uma multa diária de R$ 1 milhão será aplicada às instituições. Na decisão, o juiz Felipe Flores Viana lembrou o impacto da presença dos garimpeiros na disseminação da Covid: “Se desde o início da demanda as medidas determinadas pelo TRF 1 não somente tivessem sido bem elaboradas, mas efetivadas, possível é que essas crianças, fora os demais indígenas mortos, não tivessem de forma tão vil e desnecessária perdido suas vidas”.
‘O estrago já foi feito’
A mesma preocupação parece passar longe da Assembleia Legislativa de Roraima, onde, em janeiro, foi aprovado um projeto de lei assinado pelo governador Antonio Denarium liberando o garimpo no estado, “independentemente de prévios trabalhos de pesquisa”. A poucos metros dali, um reflexo das políticas pró-garimpo pode ser visto em uma estátua de sete metros de altura de um garimpeiro com sua bateia à mão.
A lei, no entanto, provocou muitas críticas de organizações indígenas que afirmaram que o garimpo não permite o desenvolvimento humano e causa conflitos. Menos de duas semanas depois, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes suspendeu a lei após a Rede Sustentabilidade entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade.
Na avaliação de Marugal, a ação foi muito importante. “Essa lei é inconstitucional porque invade a competência da União para legislar sobre o meio ambiente.” Mesmo comemorando a decisão do STF, ele acredita que “o estrago já foi feito. Quando o governo sinaliza que garimpo é prática ambientalmente responsável e que em algum momento haverá a legalização, cria-se um clima político favorável”.
Há cerca de 20 mil garimpeiros no território Yanomami – onde vivem 27 mil indígenas. Juntamente com o aumento do garimpo, houve também a explosão da malária. Nas denúncias feitas à PF, os indígenas afirmam ainda que os pólos de atendimento médico têm sido utilizados por garimpeiros, sobrecarregando as clínicas e colocando em risco ainda maior a saúde dos povos indígenas.
Além de denunciar a presença de aeronaves como a do senador no território Yanomami, as associações indígenas também relatam os danos irreparáveis ao meio ambiente causados pelo garimpo. Há relatos de locais imundos, rios poluídos e a existência de verdadeiras vilas de garimpeiros dentro das áreas de reserva. “A consolidação de uma atividade econômica clandestina de tal dimensão no coração da TIY [Terra Indígena Yanomami], tão próxima a comunidades indígenas de recente contato ou de isolamento voluntário, com todos impactos socioambientais que impõe, representa uma gravíssima ameaça para a sobrevivência dos povos Yanomami e Ye’kwana.”
Essa reportagem foi produzida com o apoio do Pulitzer Center em parceria com o Rainforest Journalism Fund.