Warning: The following report contains descriptions of sexual violence.
An English summary of this report is below. The original report, published in Portuguese in Setenta e Quatro, follows.
International studies and data point to the devaluation of sexual violence in psychiatric hospitals. In Portugal, there is no data showing how many cases have been registered in public and private health and in which specialties, including psychiatry. Seventy-Four tells the story of women who survived sexual abuse in psychiatric settings.
Aviso: O relatório que se segue contém descrições de violência sexual.
Há 40 Anos que a Psiquiatria Se Debate com a Violência Sexual nos Hospitais e Consultórios
Estudos internacionais e dados apontam para a desvalorização da violência sexual em hospitais psiquiátricos. Em Portugal, não há dados que permitam saber quantos casos houve na Saúde pública e privada e em que especialidades, inclusive na Psiquiatria. O Setenta e Quatro conta a história de mulheres sobreviventes de abusos sexuais em contexto psiquiátrico.
Entra-se no consultório e dá-se de caras com uma obra que retrata Medusa. Não há paisagem, mas aquele quadro pendurado no consultório de um psicoterapeuta, situado na área Metropolitana de Lisboa, transporta-nos para uma espécie de tempo mítico. Antecedendo um profundo silêncio, é a partir de uma trajetória de sofrimento que o psicoterapeuta explica aquele que é um contexto não muito longe do mito da figura mitológica: a violência sexual.
A ele junta-se Sara. De frente para o quadro, a mulher, com 48 anos, senta-se num cadeirão vermelho. Depois de engolir uma e outra vez em seco, começou a sua história. “Vou contar-vos isto um bocadinho a seco, porque é a única maneira de vos conseguir dar um contexto”. Sara foi coagida e violada por um psiquiatra no passado, sugerido pela mãe. “Levou-me a ele, porque era uma pessoa que ela já conhecia. Foi o mesmo a que ela recorreu quando precisou de ajuda psiquiátrica, "depois de o meu pai morrer”, conta Sara. Na altura, tinha 19 anos.
A primeira coisa que a mãe lhe disse acerca do psiquiatra foi que era conhecido por ser mulherengo. “Não havia nenhuma máscara que eu pudesse usar. Estava numa depressão horrível.” Viu-se sem alternativa. E sentiu que podia confiar, confiou.
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“Foi o caldo perfeito para se repetir o abuso: os ingredientes do passado, do presente e das necessidades dela estavam todos combinados”, explica o psicólogo, que acompanha Sara uma vez por mês e que ela fez questão que estivesse presente durante a entrevista.
O pai de Sara suicidou-se quando ela tinha 13 anos, quando a sua mãe se quis separar dele. Dois anos depois, a jovem passou a ser vítima de abusos sexuais frequentes por parte do padrasto. Foi aí que começaram.
Aos 18 anos, quando entrou para a faculdade, conheceu um rapaz e começaram a namorar. Viu ali o momento ideal para se tentar livrar do padrasto. Na terapia encarava-o como o “terror sem nome”, porque se lembrava do terror que sentia sempre que ficava sozinha em casa com ele. “Vamos lá despachar isto”, era o que pensava de cada vez que se via sozinha com ele. Só queria libertar-se daquele sentimento de impotência. “Era como se eu soubesse que ficaria ali, estática, e só esperava que aquilo acabasse.”
Pouco antes de fazer 20 anos e de terminar a universidade, Sara e o namorado acabaram a relação. “Naquela altura, já me tinha conseguido libertar do meu padrasto”, conta. Mas o término foi como o espoletar de um gatilho. Andava naquela violência havia anos e anos. “Fui-me mesmo abaixo”, diz Sara em voz alta, olhando para o seu atual psicoterapeuta.
Foi naquele momento em que estava numa depressão profunda que Sara foi ao psiquiatra que a mãe lhe recomendou. Era um especialista renomado e reconhecido na área. Também tinha um consultório privado na Área Metropolitana de Lisboa. O psiquiatra passou-lhe a medicação nas primeiras consultas e Sara melhorou, mas não havia progresso clínico. “Apenas me sentia melhor, mas era algo passageiro.” Uma e outra vez, Sara volta a momentos específicos dos tratamentos e dos abusos a que foi submetida, mas há uma certa dificuldade em identificar os anos em que cada situação aconteceu. Este é também um sintoma do trauma, e é algo que ainda hoje trabalha na terapia.
Cerca de três anos depois de começar a trabalhar e de ter saído da universidade, Sara voltou ao consultório do psiquiatra. “Falámos sobre outras coisas. Era uma pessoa com muita cultura.” Na altura, isso fascinava-a. Ele falava sobre “coisas muito mais eruditas do que as pessoas da minha idade”. Uma das particularidades que Sara menciona desde logo era o gosto pela música clássica. Seguiu-se a partilha de interesses sobre literatura e artes plásticas. Recorda inclusive o livro que o psiquiatra lhe lia quando ia para consulta.
“A autora era a Marguerite Duras. É um livro sobre uma mulher casada, do princípio do século XX, que começa a ir a uma taberna onde passa a encontrar-se com um homem e a beber copos de vinho”, explica Sara, ainda que com alguma dificuldade em lembrar-se do nome do livro. Falava de Moderato Cantabile, uma publicação francesa de 1958. Depois foram as referências do cinema.
O médico psiquiatra era 40 anos mais velho que Sara, era casado e tinha filhos. “Vim a saber mais tarde pela minha mãe que não fui nem a primeira nem a segunda pessoa que ele seduziu enquanto médico”, afirma. Acreditava fazer parte de um padrão. “Lembro-me inclusivamente de, algum tempo depois, estar a caminhar pela rua e a tentar convencer-me de que aquilo não era igual ao que tinha acontecido com o meu padrasto — mas o que eu sentia era igual. Portanto, não me sentia bem, não sentia”, admite. “Obviamente, não foi uma escolha livre da minha parte. Fui manipulada e levada a um certo sítio para que acontecesse. Lembro-me que numa das sessões, sem sequer contar, ele beijou-me quando saía do consultório”. Sara não deixa de reconhecer que este não foi o momento em que o abuso começou, porque todos os atos do médico já tinham, para si, um fim como propósito, mas só aos 30 anos é que se apercebeu tratar-se de um abuso.
Não havia marcas e Sara questionava-se muitas vezes sobre o que configurava ou não um ato de violação. “Estamos habituadas a ver ou a ouvir em filmes, e na própria sociedade, o discurso de que um violador é uma pessoa que desconhecemos, que nos agride, que nos espera, que age como um predador e que são necessárias marcas visíveis, quando isso deixou de ser assim”, diz a mulher de 48 anos.
Numa situação de perigo, presente em qualquer ato violento, o nosso cérebro reage automaticamente para nos proteger. “Uma agressão sexual não é só física, também é psicológica. Intimidar uma pessoa, provocar, ameaçar, o tipo de toque, tudo isso é uma agressão sexual”, explica o psicoterapeuta Rui Ferreira Nunes.
Sara é uma das 47 mulheres sobreviventes que o Setenta e Quatro entrevistou, vítimas de abusos sexuais entre 2000 e 2023. O nome desta mulher é fictício por causa de todas as falhas que encontrou, e da dor e vergonha que sentiu, com a falta de “apoio que sentiu e de toda a manipulação a que foi sujeita num lugar que deixou de ser seguro” para ela. O médico já morreu.
De que forma estas realidades podem acontecer dentro de um consultório médico de um psiquiatra ou ala de internamento psiquiátrico? Ferreira Nunes esclarece que há vários perfis de agressores e, neste caso concreto, há um outro fator: “um psiquiatra sabe o perfil da paciente, o que a fragiliza. Torna-se conhecedor dela melhor que ninguém, esse é o ponto a seu favor”. Se estivermos a falar de um agressor com um perfil mais próximo da psicopatia — caso que o psicólogo refere — “ele é capaz de antecipar o comportamento da pessoa e detetar as suas vulnerabilidades”.
Coloquemos a lente nesta especialidade: a Psiquiatria. A violência sexual em estabelecimentos de internamento psiquiátrico tem sido uma preocupação desde o surgimento dos asilos. Brian Barnett, psiquiatra e escritor norte-americano alerta para esse fator no estudo "Addressing Sexual Violence in Psychiatric Facilities" (Abordagem da Violência Sexual nos Estabelecimentos Psiquiátricos), publicado em 2020.
Fazendo uma comparação entre os Estados Unidos e a Europa, um dos psiquiatras e investigadores da Cleveland Clinic Foundation não deixa de reconhecer que, nos últimos anos, os esforços de segurança de um paciente em instalações psiquiátricas dos Estados Unidos têm-se “concentrado, principalmente, na minimização e na prevenção do suicídio, que é raro, ocorrendo uma taxa de três por 100 mil admissões psiquiátricas de pacientes internados”. Uma situação que Barnett esclarece com o facto de as instituições darem ainda menos atenção à violência sexual: “que ocorre com muito mais frequência. O objetivo é empurrar o problema”, escreve no estudo.
Se em 2020 o especialista alertava para este problema, quatro anos antes o tema não era de todo desconhecido. O jornal norte-americano The Atlanta Journal publicou uma série de seis artigos de investigação — “License to betray” ("Licença para Trair") — nos quais denunciou os abusos sexuais que milhares de médicos perpetraram em todos os estados sobre mulheres pacientes. De ginecologistas a psiquiatras, o cenário era “preocupante”: “as vítimas eram bebés, adolescentes, mulheres na casa dos 80 anos, toxicodependentes e reclusas”, lê-se no primeiro artigo.
A investigação destacou ainda como mais de metade dos 2.400 médicos punidos por violência sexual entre 1999 e 2016 continuaram a poder exercer a profissão. A Psiquiatria foi uma das especialidades referidas ao longo dos seis artigos publicados. A publicação de “License to Betray” decorreu até ao início deste ano.
Brian Barnett vai mais longe e faz um pequeno levantamento de dados europeus. “Em 2018, a Comissão de Qualidade de Cuidados do Reino Unido publicou um estudo que revela 273 alegadas agressões sexuais em instalações psiquiátricas que foram relatadas ao Serviço Nacional de Saúde durante um período de três meses”, lê-se no artigo científico de 2020. Das quase três centenas de alegadas agressões sexuais, o psiquiatra nada conseguiu apurar sobre o seu encaminhamento.
Já em maio deste ano, os jornais britânicos The Guardian e British Medical Journal registaram mais de 100 mil casos de violência sexual, assédio e má conduta em hospitais do National Health Service (Serviço Nacional de Saúde), em Inglaterra. Os especialistas alertavam que estes casos não estavam a ser registados nem investigados entre 2017 e 2023. Os abusos sexuais denunciados por mulheres pacientes e perpetrados por profissionais de saúde, revela a investigação, eram superiores a três mil.
Para prevenir “mais eficazmente” a violência sexual, o relatório da Comissão de Qualidade de Cuidados do Reino Unido, também referido pelo psiquiatra, recomendou “orientações mais claras para o pessoal, formação para que o corpo clínico possa assegurar o bem-estar sexual dos doentes, reforço do sistema de notificação [de má conduta sexual hospitalar] e investimento no ambiente físico e terapêutico dos enfermeiros”.
A violência sexual na psiquiatria: um contexto que se transformou num “terror sem nome”?
Manuela não se deslocou a um consultório médico, mas às urgências de um hospital. Fê-lo há três meses. De lá, partiu à pressa e com grande esforço. Assinou um termo de responsabilidade e saiu. “Não consegui ficar mais um segundo que fosse ali.” Manuela estava deitada numa maca das urgências de um hospital público da região Centro na sequência de uma hipotermia. Deu entrada em estado grave porque era imunossuprimida. Foi nesse momento que reconheceu a voz do enfermeiro que a violou quando tinha 16 anos. Esteve nas urgências sete horas e foi na troca de turno que reconheceu a voz.
Hoje, com 34 anos, Manuela conta que não tinha voltado mais àquelas urgências. Mas desta vez tinha esperança de que o seu violador estivesse reformado, por isso sentiu-se segura em ir àquele hospital. Levou acompanhante — sabia a possibilidade de ter um presente — mas ele apenas pôde ficar com ela até à triagem. “Estavam a passar pelas macas e a transmitir a informação: ‘Este paciente chama-se isto, deu entrada por aquilo.’ Só pensei que tinha de sair dali, mas não tinha como. Precisava. Rapidamente.’”
As únicas reações que teve foram fingir que dormia, puxar os cobertores e tapar a cara com um braço, para não ser identificada pelo seu agressor. “Se ele tinha dúvidas de quem eu era, deixou de ter. Assim que tive a certeza de que estava bem longe, chamei um médico e disse que me queria ir embora”, explica Manuela, referindo que o médico a desaconselhou a fazê-lo, porque era necessário fazer mais exames.
Manuela percebeu que o enfermeiro a reconheceu porque, enquanto o médico foi buscar o termo de responsabilidade, ele voltou a passar pela maca dela “umas sete ou oito vezes, a provocar”. Já o fazia quando se deslocava até ao local de trabalho dela, mas nessas situações Manuela nunca estava sozinha nem numa posição vulnerável.
Foi então que escondeu o cateter, por receio de que fosse ele a tirá-lo. Levantou-se devagar, porque estava fraca e se desmaiasse teria de lá ficar. Começou a andar, pé ante pé, e saiu dali. Tirou o cateter quando chegou a casa. “Pensava que tinha ultrapassado isto e, afinal, estava cá tudo dentro, na mesma.”
O enfermeiro a que Manuela se refere violou-a há 22 anos. Não tinha sido a primeira vez que Manuela se tinha tentado suicidar, ingerindo uma dose excessiva de comprimidos. Autista, mas diagnosticada já em idade adulta, Manuela era muito magra e na escola sofria de bullying pelos colegas. A relação com a mãe também não ajudava: “era narcisista”. Nesse dia, no hospital, fizeram-lhe uma lavagem ao estômago e puseram-na numa enfermaria, para que recuperasse. A memória em nada lhe falha: é com detalhe que Manuela descreve aquele dia, porque “por mais que pense estar ultrapassado, viverei com isto para o resto da minha vida”, lamenta.
Um homem de bata aproximou-se. Tinha um nome escrito num cartão que trazia ao pescoço, nome que Manuela se lembra até hoje. Recorda-se ainda da sua fisionomia, da sua voz e do seu cheiro. “Eu estava num quarto com mais camas e este homem teve o cuidado de observar bem à sua volta antes de entrar”, conta. Para ela, foi algo premeditado.
“Foi o tipo de conversa com que me abordou para ver como eu iria reagir, se iria gritar, empurrar. Estava a tentar perceber com quem estava a lidar. E percebeu que tinha ali alguém extremamente vulnerável. ‘Tu mereces viver.’ E fazia-me festas no cabelo.” Foi sedada e acordou no dia seguinte com sangue e dores na vagina.
O caso de Amélia C., no Brasil, aconteceu há três ano. Foi em 2019 que o The Intercept Brasil assinalou mais de mil abusos sexuais em serviços de saúde. A investigação de Bruna de Lara era clara: o mesmo enfermeiro, ainda a exercer, violou três mulheres.
Este era um dos casos registados numa recolha de 19 estados. Apesar do artigo registar queixas em todos os estados enumerados, apenas alguns partilharam os dados que tinham sobre o assunto. No caso da Secretaria de Segurança de São Paulo: “há 854 registos de violação em 15 tipos de estabelecimento, incluindo asilos e hospitais psiquiátricos”, lê-se no relatório. O psicólogo Rui Ferreira Nunes não deixa de reconhecer, indignado, que estes parecem “números e relatos de outro tempo”.
À semelhança de Ferreira Nunes, Barnett chega à mesma conclusão: o tema da violência sexual contra pacientes na especialidade de Psiquiatria só surge na literatura científica no final dos anos 1970. “O tema da violência sexual só surge quando foi publicado o artigo “Rape Accusations in Psychiatric Hospitals: Institucional Dynamic in Crisis” [Acusações de abusos sexuais em hospitais psiquiátricos: Dinâmica Institucional em Crise], esta questão está debaixo do tapete há mais de 40 anos”, escreve Barnett.
Os autores deste artigo — Richard Deucher, Jerrold Maxmen e Toksoz B. Karasu, investigadores do Departamento de Psiquiatria da norte-americana Albert Einstein College of Medicine — escrevem com surpresa: “pelo menos tanto quanto sabemos, o tópico da violação que envolve doentes psiquiátricos hospitalizados ou não nunca foi relatado na literatura profissional”.
“Isto tem um fundamento”, confirma o Rui Ferreira Nunes. “As pressões sociais e a ética profissional exigem que não evitemos uma discussão aberta sobre o assunto, mas nada disso acontece. Aliás, à formação e especialização de profissionais em realidades de Violência Sexual e Stress Pós-Traumático, mas, ao que parece, a ‘Saúde’ nem sempre fala sobre isto dentro do próprio espectro.” Passados 47 anos, viver no quadro desta falta continua a ser uma “luta para e da Psiquiatria".
Sara não deixou de ter acompanhamento psicológico. Aliás, é no mesmo gabinete em que nos encontramos que olha ao redor e reconhece o quão importante foi e está a ser o processo de terapia com o atual psicólogo, que já a acompanha há alguns anos.
Mas o trauma ainda existe. Ainda não se consegue envolver totalmente num relacionamento. Teve dois namorados depois da situação de abuso. Na atual relação, a liberdade que sente é quase total, “mas os monstros ainda a perseguem”.
Na mesma semana em que conversou connosco relembrou um episódio pelo qual tinha passado dias antes: “ele [o namorado] tocou-me na perna, numa zona específica que reativou aquelas memórias em mim”. Sentiu-se assustada. Afastaram-se durante alguns dias. A sua mãe sabe do abuso do padrasto e do abuso do psiquiatra. Sara não mantém quaisquer relações com o padrasto. A mãe sim. “É um assunto que nunca mais se pronunciou em casa. Ou era isso ou a nossa relação de mãe e filha — que já é complicada — deixaria de existir”.
Com Cláudia Marques Santos, uma investigação em colaboração com o jornal Público, apoiada pela bolsa de jornalismo Gender and Equality do Pulitzer Center.