SÃO PAULO, Brazil—Acompanho a situação da mortalidade materna no Brasil há muitos anos e, na pandemia de Covid-19, quando os números dispararam, senti que havia histórias, iniquidades e falhas na rede de atenção maternoinfantil que mereciam um olhar mais acurado.
Os números apontavam que o epicentro dessas mortes estava na região Norte, especialmente em Roraima. Em parceria com o Pulitzer Center, uma organização sem fins lucrativos de apoio ao jornalismo, a empreitada começou no fim de janeiro.
Antes, eu já havia tentado, sem muito sucesso, entrevistar familiares de mulheres mortas na gestação ou após o parto, e já sabia que não seria uma tarefa fácil. A morte materna é um tema tão dolorido que as próprias famílias fogem dele.
Depois de várias tentativas infrutíferas, uma fonte da área da saúde me entregou uma lista com nomes e endereços de gestantes mortas por Covid. Sem telefones, o jeito seria bater de porta em porta.
Eu e meu colega videojornalista Henrique Santana seguimos primeiro para Belém, pois o Pará é um estado que também registrou elevada taxa de mortes maternas. Vários dos endereços da lista eram em áreas vulneráveis e estavam incompletos. Havia o nome da rua, por exemplo, mas não o número.
O desespero já estava batendo quando duas moradoras, em endereços diferentes, nos receberam. Eram a sogra de Dienne Santos e a cunhada de Áurea Monteiro, duas mulheres que haviam contraído Covid e morrido logo após o parto. As mortes ocorreram no mesmo dia, em 31 de março de 2021.
Em poucos minutos de conversa, elas deram vazão ao choro contido por meses. "Ela saiu daqui andando, conversando, e dias depois estava em um caixão lacrado, sendo enterrada sem velório, sem nada. Como pode?’, indaga Antônia Santos, sogra de Dienne.
Eu já tinha algumas respostas dos motivos que levaram a esse aumento de mortes, mas, nas entrevistas tête-à-tête, com familiares e profissionais de saúde, as falhas assistenciais ficaram cristalinas.
Além da falta de pré-natal, muitas mulheres foram submetidas a cesáreas no auge da infecção por Covid, situação que eleva o risco de morte. Quase um quarto delas não teve acesso à UTI.
Em Roraima, a maternidade estadual, em Boa Vista, funciona de maneira improvisada, em tendas de lona. É a única referência de parto de alto risco no estado, mas não tem UTI obstétrica.
Tentamos entrar, mas fomos impedidos por seguranças. Familiares de pacientes se recusaram a falar.
Localizei a tia de uma jovem de 22 anos que havia morrido duas semanas antes de infecção generalizada, após agonizar dias na maternidade, com o bebê morto no útero. A tia concordou em conversar só por telefone.
Também busquei familiares de gestantes mortas pela Covid em Boa Vista, mas a maioria não mora na capital. Em dois casos, os maridos aceitaram conversar, mas depois desistiram. O enfermeiro Gracione Santos, que hoje cuida dos cinco filhos, foi a exceção e a salvação do nosso vídeo.
Em Pacaraima, na divisa com a Venezuela, a situação era muito pior. No dia que lá chegamos, uma quarta-feira, não havia médico na unidade básica de saúde. O município tinha ficado quatro semanas sem nenhum na atenção primária. Naquela semana, era para ter iniciado um rodízio com cinco profissionais. Mas, naquele dia, um deles não apareceu.
Fomos ao hospital, que fica ao lado. Uma médica nos contou que teve que aprender a lidar com pacientes que chegam da Venezuela desfalecidos de fome. Ela topou gravar entrevista, mas depois se arrependeu e desautoriza a publicação.
Acompanhamos também o trabalho de agentes comunitários de saúde, em visitas a gestantes que vivem áreas vulneráveis, com esgoto a céu aberto. As queixas de saúde são generalizadas, além de relatos de fome.
Na viagem de volta, percorremos os 213 km que separam Pacaraima de Boa Vista em uma lotação. O trecho, que poderia ser feito uma hora e meia, levou quatro horas. Carros, motos e ônibus trafegam na contramão disputando os raros espaços sem buracos.
Em alguns momentos, tive a impressão que não chegaria inteira dessa viagem. Cheguei de corpo, mas não de alma. Nunca vi tanto desamparo.