An English summary of this report is below. The original article, published in Portuguese in Público, follows.
Warning: This report contains descriptions of sexual violence.
The unthinkable for any victim of sexual violence happens, and it is not uncommon in Portugal: suffering abuse in the place where you should feel safest — in a hospital or a doctor's office. We gathered testimonies and data and explored legal implications and stigmas associated with a problem that has jumped into the national news.
For this investigation, we contacted 47 victims of sexual abuse in a hospital setting, public and private, or in a doctor's office. Of these 47, only 14 women agreed to share their experiences with us. The remaining victims stayed only for exploratory conversations. They did not speak afterward, driven by trauma and fear of exposure or possible reprisals.
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“Como é que eu vou pedir ajuda a um hospital, se o abuso acontece no hospital?”
Aviso: O relatório que se segue contém descrições de violência sexual.
O impensável para qualquer vítima de violência sexual acontece e não é pouco frequente em Portugal: sofrer abuso no local onde se deveria sentir mais segura — num hospital ou num consultório médico. Os testemunhos, os números, as implicações jurídicas e os estigmas associados a um problema que saltou para o noticiário nas últimas semanas.
Deixou as urgências à pressa, mas em esforço, com passos miúdos. Ainda fizeram com que assinasse um termo de responsabilidade e saiu porta fora. Não conseguia ficar mais um segundo que fosse, ali. Há dois meses, estava Manuela deitada numa maca das urgências de um hospital público da região Centro por causa de uma hipotermia — Manuela é imunossuprimida — quando reconheceu a voz do enfermeiro que a violou, tinha ela 16 anos.
“Estive nas urgências sete horas. Na troca de turno, reconheci a voz”, conta Manuela, hoje com 34 anos. Nunca mais tinha voltado àquelas urgências. Mas, desta vez, tinha esperança de que o seu violador estivesse reformado. Mesmo assim, fez questão de levar acompanhante, que pôde ficar com ela até à triagem. “Estavam a passar pelas macas e a transmitir a informação: ‘Este paciente chama-se isto, deu entrada por aquilo’. Só pensei: ‘Tenho de sair daqui, mas não tenho como, rapidamente’.”
Fingiu que dormia, puxou os cobertores para cima e tapou a cara com um braço. Os enfermeiros pararam à frente da cama onde estava. “Se ele tinha dúvidas de quem eu era, deixou de ter. Quando tive a certeza de que estava bem longe, chamei o médico e disse que queria ir embora”, explica Manuela, referindo que o clínico a desaconselhou a fazê-lo, porque necessitavam de fazer mais exames.
“Enquanto foram buscar o termo de responsabilidade, ele passou pela minha maca umas sete ou oito vezes, a provocar.” Manuela tem a certeza de que ele a reconheceu. Escondeu o catéter, por receio de que fosse ele a tirá-lo. Levantou-se devagar, porque, se desmaiasse, ficaria no hospital. Começou a andar, como pôde, e saiu dali. Tirou o catéter ela própria, em casa. “Pensava que tinha ultrapassado isto e, afinal, estava cá tudo dentro, na mesma.”
“Ele” é o enfermeiro que a violou há 22 anos. Não tinha sido a primeira vez que Manuela tinha tentado suicidar-se, ingerindo uma dose excessiva de comprimidos. Autista, Manuela era muito magra e sofria de bullying constante por parte dos colegas na escola. A relação com a mãe também não ajudava. No hospital, fizeram-lhe uma lavagem ao estômago e colocaram-na numa enfermaria, para recuperar. Um homem de bata aproximou-se, tinha um nome escrito na lapela, de que se lembra até hoje, assim como da fisionomia, da voz e do cheiro. “Eu estava num quarto com mais camas e este homem teve o cuidado de observar bem à volta antes de entrar”, conta Manuela. “Foi o tipo de conversa com que me abordou… para ver como eu iria reagir, se iria gritar, empurrar. Estava a tentar perceber com quem estava a lidar. E percebeu que tinha ali alguém extremamente vulnerável. ‘Tu mereces viver’ e fazia-me festas no cabelo.” Sedou-a. Acordou no dia seguinte com sangue e dores na vagina.
Números a aumentar
O acto perpetrado por este enfermeiro pode configurar vários crimes: o de violação (previsto e punível pelo artigo 164.º do Código Penal [CP]), em que houve cópula vaginal ou introdução de objectos na vagina; o de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência (artigo 165.º do CP); o de abuso sexual de pessoa internada (artigo 166.º do CP); e, como à data dos factos Manuela tinha 16 anos, pode ainda considerar-se verificado o crime de abuso sexual de menores — entre os 14 e os 18 anos — dependentes ou em situação particularmente vulnerável (artigo 172.º do CP).
Manuela ainda tentou avançar com uma queixa, mas desistiu, quando não deixaram a mãe entrar no gabinete do Ministério Público onde iria estar também o abusador e o seu advogado.
Têm sido várias as notícias a relatar casos recentes de violação e coacção sexual. Esta quarta-feira, por exemplo, multiplicaram-se as notícias sobre um médico radiologista com consultório privado em Bragança que foi presente a um juiz de instrução, acusado de dois crimes de violação. O caso vai avançar para julgamento, uma vez que o juiz considerou haver indícios de crime.
Há um mês, um médico ortopedista do hospital de Penafiel foi suspenso de funções, suspeito de ter violado duas doentes. O médico de 60 anos foi detido pela Polícia Judiciária e presente a um juiz de instrução, que o deixou sair em liberdade, impondo-lhe como medidas de coacção a suspensão de funções e proibição de contacto com as vítimas. Em Julho de 2021, um médico também ortopedista, de 68 anos, foi suspenso de funções do hospital público da Covilhã pela alegada prática de um crime de violação e quatro crimes de coacção sexual, em contexto hospitalar. Em Setembro do ano passado, o médico foi absolvido das duas acusações que avançaram para tribunal, uma de violação e uma de coacção sexual, porque o colectivo de juízes considerou não terem sido provados qualquer um dos crimes. O médico encontra-se hoje a exercer no mesmo hospital. Entretanto, as vítimas recorreram da decisão e aguardam o veredicto do Tribunal da Relação de Coimbra.
Em 2022, chegaram à Entidade Reguladora da Saúde (ERS) 149 queixas por “violência/ agressão/ assédio”, sem distinção: 28 casos ocorridos em hospitais privados com internamento; 15 em privados sem internamento; 79 em hospitais públicos com internamento; 19 em públicos sem internamento; 7 em “social” (lares ou cuidados continuados/ paliativos); e 1 em “social” sem internamento. Na última década, os números de violações têm vindo a crescer, tanto em termos de casos como de queixas. O recém-publicado Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2022 indica que em 2015 houve 375 casos de violação e, em 2019, 431 casos. Em 2022, registaram-se 519 casos, o que significa um aumento de 30,7% relativamente ao ano anterior (397).
Quanto às queixas das vítimas de agressores que são profissionais de saúde — e segundo os dados da ERS —, se em 2015 foram apresentadas 58 queixas, em 2023 e até Maio este número foi já igualado. “Convém salientar que (…) a ERS procede a uma avaliação mais aprofundada da situação, através de diligências específicas junto dos prestadores de serviços e/ou à abertura de um novo processo de inquérito”, respondeu nos esta entidade por escrito, juntamente com o envio dos números mais recentes. O PÚBLICO insistiu em saber junto da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, responsável pelas diligências aquando da apresentação de queixa nos meios hospitalares públicos, para perceber quantas dessas queixas desembocaram em abertura de inquérito, e, entre estes, quantos avançaram para a fase de julgamento. Não houve resposta.
Para este trabalho, contactámos 47 vítimas de abuso sexual — de coacção ou de violação — em contexto hospitalar, público e privado, ou em consultório médico. Destas 47, apenas 14 aceitaram partilhar a sua experiência. As restantes vítimas ficaram pelas conversas exploratórias e desistiram de falar connosco: todas por medo — da exposição, de eventuais represálias —, muitas por incapacidade emocional de voltar a viver o que se passou.
Destas 14 vítimas, três apresentaram queixa, tendo duas das queixas sido objecto de acusação e julgamento em tribunal e resultado em condenações dos agressores em penas de prisão suspensas na sua execução. Todas as vítimas com quem falámos e que não apresentaram queixa referiram o “estatuto social” dos abusadores — médicos e enfermeiros — como principal razão. A palavra deles “valeria sempre mais” em tribunal do que a sua. Mas há outras causas: a frieza das salas dos hospitais e das esquadras de polícia para atendê-las, a falta de formação dos profissionais para lidar especificamente com a sua situação e, ainda, o tempo legal para apresentar queixa, que é muito curto. As vítimas dispõem de apenas seis meses para fazê-lo. “Como é que eu vou pedir ajuda a um hospital se o abuso acontece no hospital?”, questiona a psicóloga Catarina Barba. “E a violência sexual tem sempre estas características: é alguém que está numa relação de poder — seja um pai, um professor, um vizinho, a baby-sitter, o médico.” Esta psicóloga especializada em violência sexual e stress pós traumático faz questão de frisar que não existem profissões ou estatutos sociais imunes ao perfil de agressor sexual. “Mas nós temos estes preconceitos: um médico é ‘alguém que cuida de nós’, que ‘nos protege’. É alguém que ‘estudou muito’ e, portanto, ‘tem uma maneira de estar diferente’”, acrescenta. “O que nos enviesa a possibilidade de perceber que isso não significa que um médico não possa ser um agressor sexual.”
A vítima, do trauma à consciencialização
A primeira coisa que a mãe lhe disse acerca do psiquiatra que lhe acabara de recomendar foi que era conhecido por ser mulherengo. O pai tinha-se suicidado quando Sara tinha 13 anos, porque a mãe se quis separar, e, a partir dos 15, Sara passou a ser vítima de abusos sexuais regulares por parte do padrasto. Quando entrou para a faculdade, conheceu um rapaz e começaram a namorar. Sara diz ter-se servido desse “estratagema” para se tentar livrar do padrasto. Lembra-se do terror que sentia sempre que ficava sozinha em casa com o novo companheiro da mãe. Ele não trabalhava nessa altura. Só pensava: “Vamos lá despachar isto”, de modo a libertar-se do sentimento de terror para o resto do dia. “Era como se eu soubesse que ficaria ali, estática e... só esperava que aquilo acabasse. Não havia ali subtileza.” Chama-lhe o “terror sem nome”.
Aos 19, 20 anos — não se lembra bem —, Sara e o namorado terminaram a relação. “Fiquei de rastos, como devem imaginar. Andava naquela violência havia anos e anos”, conta Sara, hoje com 48. Estamos na sala do consultório do seu actual psicólogo, por quem fez questão de se acompanhar para esta entrevista. “Pela primeira vez, fui-me mesmo abaixo.” Encontrava-se num estado de depressão profunda. Foi ao psiquiatra que a mãe lhe sugeriu, “bastante conhecido da praça”, com consultório privado na Área Metropolitana de Lisboa. Já não é vivo. Passou-lhe medicação, Sara melhorou. A linha do tempo não consegue estruturá-la bem, a organização das memórias atraiçoa-a. Logo após a faculdade ou já uns três ou quatro anos depois de estar a trabalhar, Sara voltou ao consultório do psiquiatra. “Falámos sobre outras coisas. Era uma pessoa com muita cultura”, descreve, justificando o fascínio que sentiu por aquele homem. “Falava-me sobre coisas muito mais eruditas do que as pessoas da minha idade.” Conversavam sobre música clássica, Sara gostava muito de música clássica. Falavam sobre literatura, sobre artes plásticas, sobre cinema. Uma vez levou-lhe um livro de Marguerite Duras e começou a ler-lho na consulta. “É um livro sobre uma mulher casada, de princípio do século XX, que começa a ir a uma taberna onde passa a encontrar-se com um homem e a beber copos de vinho.” O livro chama-se Moderato Cantabile, publicado pela primeira vez em França em 1958.
“Foi o caldo perfeito para se repetir o abuso: os ingredientes do passado, do presente e das necessidades dela estavam todos combinados”, explica o psicólogo, que dá consulta a Sara uma vez por mês.
“Lembro-me inclusivamente de, algum tempo depois, estar a ir pela rua e tentar convencer-me de que aquilo não era igual ao que tinha acontecido com o meu padrasto — mas o que eu sentia era igual. Portanto, não me sentia bem, não sentia”, admite Sara. “Obviamente porque não foi, de facto, uma escolha livre da minha parte. Fui manipulada e levada a um certo sítio para que acontecesse.” Só aos 30 anos é que se apercebeu tratar-se de um abuso.
Este abuso vem configurado como crime no artigo 165.º do Código Penal e é relativo a “quem praticar acto sexual de relevo com pessoa inconsciente ou incapaz, por outro motivo, de opor resistência, aproveitando-se do seu estado ou incapacidade”.
Em tribunal, os juízes chegam a questionar porque não há marcas físicas de luta no corpo da vítima. Numa situação de perigo, presente em qualquer acto violento, o nosso cérebro reage automaticamente para nos proteger, explica o psicoterapeuta Rui Ferreira Nunes. “Há três respostas possíveis por parte da vítima: o fight, que é uma reacção de luta para com o estímulo perigoso; o flight, quase como uma reacção de fuga perante o perigo; e o freeze, encarado como reacção de paralisação perante a situação perigosa, que muitas vezes é questionado do ponto de vista jurídico”, pormenoriza Ferreira Nunes. “Estes são comportamentos que podem reproduzir-se não só durante como após o abuso.”
Juliana sente vergonha por ter sido vítima de coacção sexual, num hospital privado da região Centro do país. “Sinto vergonha por alguém saber que estive numa situação assim. A vergonha é o pavor por detrás da exposição.” Juliana tem hoje 32 anos, foi vítima de abuso por parte de um médico estava ela grávida, aos 29. Nunca fez terapia, embora tenha consciência de que deveria tê-lo feito. “Achava que era uma coisa que ia passar. Mas não estou a superar nada. Para superar alguma coisa, tenho de fazer terapia, de conversar.” Juliana disse-nos que o facto de ter partilhado a sua história connosco a aliviou, de certa forma.
“A consciencialização é sempre um processo complexo e muito demorado, diria até retardado, por várias razões. Uma delas é a vergonha inerente à situação. A vítima sente-se muitas vezes culpada pelo que aconteceu, achando que poderia ter feito qualquer coisa para evitar o abuso: ter fugido, ter dito que não”, explica Rui Ferreira Nunes.
“Tudo isto leva a que a vítima se sinta culpada e envergonhada. A vergonha torna-se num sentimento muito tóxico.” E inibidor.
Há pessoas que demoram anos a lidar com o trauma. É por isso que, desde juristas a Organizações Não Governamentais (ONG) ligadas ao apoio à vítima, o argumento é uníssono: o tempo máximo de seis meses após o abuso para apresentar queixa é muito curto e o crime deveria ser, não semi-público, mas público. “É um absurdo”, concorda a procuradora da República Helena Leitão. “Se o crime for público, nem sequer é necessário discutir-se o prazo para a apresentação de queixa. Significa que, enquanto o crime não prescrever — e um crime desta natureza pode demorar até 15 anos a prescrever — a investigação pode avançar independentemente da vontade da vítima e da família”, explica Helena Leitão. “Porque a verdade é que a vítima pode não querer apresentar queixa por razões várias, que podem ir desde querer esquecer de vez o que lhe aconteceu, à vergonha e à culpabilização que erradamente sente, à pressão da família que lhe pode dizer, ‘vamos ficar marcados, toda a gente vai ficar a saber o que aconteceu’, etc. E mesmo por parte dos namorados ou maridos pode existir incompreensão e censura para aquilo que sucedeu às vítimas.”
Um dia, ainda com poucas semanas de gravidez, Juliana estava com dores de cabeça e foi ao centro de saúde. Lá, disseram-lhe que já devia ter feito os exames pré-natais. Como no hospital público não tinham vaga imediata, decidiu fazer a ecografia a pagar do seu próprio bolso e foi a um hospital privado, também na região Centro do país. “O médico fez-me o exame de toque, o exame em que coloca o dedo na minha vagina, e eu estranhei”, conta Juliana. “Pensava que este exame só era feito quando a grávida está para dar à luz. Mas, como era o médico, não questionei.” Não usou luvas.
O médico pediu-lhe então que subisse à balança para se pesar. Ao passar por ele, passou-lhe a mão pelo rabo e deixou-a ficar pousada por uns instantes. Juliana tinha apenas vestida a bata que lhe tinha sido fornecida pelo hospital. Acabou por ser Juliana a afastar-lhe a mão. “A gente pensa que pode ter 1001 reacções, do género ‘eu batia-lhe’, ‘eu fazia um escândalo’, mas fiquei paralisada.” Lembra-se bem do sorriso lascivo do médico. Assim que pôde, saiu do hospital. Nem sequer levantou o exame. “Se eu pensava ter um segundo filho, já não penso mais”, confessa. “Não consigo voltar àquele lugar, ao lugar de estar grávida.”
As situações de abuso são semelhantes às situações de pânico, explica Rui Ferreira Nunes. “A pessoa não sabe como reagir. É apanhada de surpresa e o cérebro deixa de pensar, deixa de usar as suas funções cognitivas no sentido da acção, porque emocionalmente fica bloqueada.” Catarina Barba afirma que a violência sexual é algo que nos retira toda a sensação de controlo.
Pouco apoio à vítima, pouca formação
O Centro de Atendimento do Porto da ONG UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta só teve conhecimento de um caso de abuso sexual em contexto hospitalar no ano passado.
A presidente e a psicóloga da UMAR, Ilda Afonso e Marisa Fernandes, alertam para uma realidade preocupante: as mulheres vítimas de violência sexual que contactam o centro de atendimento são um número muito baixo em comparação com as vítimas de violência doméstica. Marisa Fernandes arrisca uma explicação: “O que temos percebido é que, pelo facto de a violência sexual ainda ser uma violência muito invisível, as mulheres não procuram a ajuda do centro. Há muito estigma”.
Marisa Fernandes é também uma das autoras do relatório da UMAR intitulado Os Desafios na Intervenção com Vítimas de Violência Sexual: Um estudo com profissionais da área da saúde e da educação no distrito do Porto. Datado de Março, este relatório — ainda não disponível online — apresenta os resultados de um inquérito feito a profissionais da saúde daquele distrito, em que 29,7% referem ter maiores problemas com a articulação externa do protocolo de actuação definido para situações de agressão sexual e 26,1% assinalam dificuldade na própria identificação das situações. À pergunta se têm formação específica para intervir neste tipo de situações, 93,8% respondem que não.
“É notório que, tanto no processo de denúncia como no apoio às vítimas, há falhas e dificuldades em fornecer resposta, sobretudo por parte dos profissionais que intervêm directamente junto das vítimas. É necessário rever as práticas de intervenção no âmbito da violência sexual, aumentar o número de respostas de atendimento e acompanhamento especializados e capacitar os profissionais”, defende Ilda Afonso.
A Convenção do Conselho da Europa Para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, assinada em Maio de 2011 em Istambul (Convenção de Istambul), é um instrumento jurídico internacional vinculativo, que estabelece um quadro legal de medidas a implementar por parte dos Estados participantes no sentido de protegerem as mulheres da violência. Esta convenção foi ratificada em Portugal em Fevereiro de 2013 e entrou em vigor em Agosto de 2014.
“Desde 2008 que o Conselho da Europa recomenda a existência de, pelo menos, um Centro de Crise a cada 200.000 mulheres. Em Portugal, existem actualmente dois centros especializados para mulheres vítimas de violência sexual, um no Porto e outro em Lisboa”, denunciam Ilda Afonso e Marisa Fernandes.
A procuradora da República Helena Leitão foi, até final do mês passado, um dos quinze peritos independentes responsáveis pelo controlo da aplicação da Convenção de Istambul nos diversos Estados membros, integrando o denominado comité GREVIO. “Quando regressava das reuniões em Estrasburgo e começava a ver Lisboa do avião, reconheço que pensava quase inconscientemente: ‘durante umas semanas vou andar melhor comigo própria e com a vida’, porque tenho a noção de que, infelizmente, a situação nos outros países da Europa não está melhor do que em Portugal.”
O Relatório Sombra apresentado em 2022 ao comité GREVIO pelas ONGs Associação de Mulheres Contra a Violência, Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres e European Women’s Lobby, considera que — e tendo em conta a Recomendação Geral n.º 35 do comité — a neutralidade nas leis não é mais aceitável. E acrescenta: “Deve ser feita uma revisão que coloque o quadro legal nacional de acordo com este referencial recentemente adoptado pelas Nações Unidas. Além disso, as leis devem integrar os compromissos ratificados por Portugal, designadamente no domínio da igualdade e da não discriminação”.
No livro Medusa no Palácio da Justiça ou uma História da Violação Sexual (ed. Tinta da China), a socióloga Isabel Ventura corrobora a presença da cultura patriarcal na própria lei. “A dificuldade (ou mesmo incapacidade) em pensar as mulheres como autoras, decisoras e detentoras de uma sexualidade activa e não dependente (e ao serviço) de acções masculinas, está continuamente presente nos discursos dos/as penalistas portugueses/as, antes e após a reforma penal de 2007. Assim acontece na voz de Figueiredo Dias, ao assegurar que ‘a violação exige sempre a intervenção do órgão sexual masculino’, ou que ‘cópula é assim unicamente a penetração da vagina pelo pénis’, e ainda que ‘o significado comum de coito exige uma conjunção de corpos com outros órgãos ou com quaisquer objectos’.”
Além disso, o preceito é o de que a intensidade do crime é proporcional à reacção da vítima. “Tudo isto indica claramente que permanece a obrigação de a vítima apresentar antagonismo. Só é dispensada desta imposição no caso de estar impedida de o fazer, ou seja, em caso de inconsciência ou semi-inconsciência”, pode também ler-se no livro. “Saliente-se ainda que, para que a incapacidade de resistir por falta de consciência seja enquadrável na norma da violação, terá de ter sido provocada pelo/a agressor/a; de outra maneira, o crime será abuso sexual de pessoa incapaz de resistir [artº 165.º do CP]. É precisamente a resistência da vítima que distingue a violação do abuso sexual de adultos/as.”
Falta de kits de assédio nos hospitais
“Só ontem é que me apercebi de que a máquina nem sequer estava ligada”, referia Sandra por videochamada, há três semanas. Em Abril do ano passado, foi, pela terceira vez, a um ginecologista com consultório privado na Área Metropolitana de Lisboa, por causa de problemas de endometriose. A endometriose é uma doença em que o tecido endometrial, o tecido que forra o útero, cresce fora da cavidade uterina, podendo estender-se a outros órgãos. Provoca dores e, por vezes, hemorragias.
Sandra entrou no gabinete e o médico pediu-lhe para se dirigir à sala de exames. Disse-lhe que tirasse a roupa da parte de cima e que se deitasse na marquesa. “Levou as mãos dele aos meus seios e começou a apalpá los”, conta Sandra, de 32 anos. “Senti que algo estava a acontecer e eu não estava a perceber ao certo de que se tratava.” Sandra freezou. “Depois, perguntou-me se tinha pêlos na vagina.” Sandra acenou que não com a cabeça. “Ele fez um gesto com a mão para que eu tirasse as cuecas, tocando-me na virilha”, explica, desconfortável. Sandra ainda se virou para o lado esquerdo como sinal de recusa. “Insistiu que tirasse as cuecas, porque era necessário fazer-me uma ecografia pélvica com sonda endovaginal”, decisão que, segundo Sandra, foi tomada no momento, porque nada estava preparado para fazer aquele exame. Obedeceu, tirou a cuecas e, quando deu por si, o médico inseriu a sonda sem usar sequer luvas.
A Organização Mundial da Saúde recomenda a presença de dois profissionais de saúde na realização de exames ginecológicos, recomendação que os hospitais portugueses incluem nas suas normas e regulamentos.
Uma proposta do Departamento da Qualidade na Saúde e do Programa de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistência aos Antimicrobianos, da Direcção-Geral da Saúde (DGS), juntamente com a Ordem dos Médicos, a norma de Janeiro de 2012 da DGS não deixa dúvidas: “As luvas devem ser usadas quando se prevê contaminação com sangue ou outros fluidos orgânicos”. Já em 2009, a Organização Mundial da Saúde recomendava o mesmo no seu folheto informativo sobre a utilização de luvas. Para a psicóloga Catarina Barba, o não uso de luvas é já uma “sexualização de um acto que é claramente premeditado”.
Num consultório privado de um ginecologista numa cidade da região Centro do país, o médico também não usou luvas para fazer o toque vaginal a Paula. Durante uma consulta de rotina, Paula queixou-se de ter sempre muitas dores durante o sexo. Enquanto a examinava com os dedos inseridos na vagina, o médico perguntou-lhe se alguma vez tinha tido um orgasmo e começou a masturbá-la. Esta situação ocorreu há 13 anos, mas só há dois é que Paula conseguiu falar sobre o assunto, pela primeira vez: tinha começado a fazer psicoterapia.
Só depois de dois meses de psicoterapia é que Sandra conseguiu proferir pela primeira vez, em voz alta, “fui abusada”. “Cada dia que passava, o nojo que sentia de mim era indescritível”, conta. Sandra tomava banhos consecutivos, sentia-se suja. Uma vez, o marido, sem perceber o que se passava, pediu-lhe que se sentassem e ela contasse o que lhe tinha acontecido. “Toquei-lhe na perna sem querer e ela começou a chorar, sem conseguir respirar.”
Lavarem-se por se sentirem sujas é uma reacção comum por parte das vítimas de abuso sexual. O que leva a que a presença de fluídos do agressor no corpo da vítima fique drasticamente reduzida. Este exame é feito por um médico de medicina legal, chamado ao hospital, e é recomendável que a vítima se apresente num prazo máximo de 72 horas.
“A maior parte das vítimas não chega dentro daquela janela de oportunidade que nós consideramos o tempo adequado para fazer a colheita de vestígios com segurança” explica Teresa Maria Magalhães, coordenadora da unidade de Medicina Legal e Ciências Forenses do Departamento de Ciências da Saúde Pública, Forenses e Educação Médica da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. “Muitas vezes, ficam a pensar se vão, se não vão, e vêm três, quatro, cinco dias depois, às vezes muito mais. E vêm já depois de urinar, depois de comer, depois de se lavarem, de lavarem a roupa, deitarem a roupa fora. Depois de uma série de coisas que se traduziram, nada mais nada menos, em destruição de vestígios.”
Para as vítimas adultas, o que a lei das perícias médico-legais prevê é que o médico que está na urgência pode receber a pessoa e fazer as colheitas, explica esta especialista em medicina forense. “E a pessoa é observada no Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses no dia útil seguinte. Já o material colhido segue para o Laboratório de genética.” Mas estes casos acarretam um risco. “Quando não são especialistas de medicina legal a fazer as colheitas, de acordo com as normas, elas podem não ser tão bem feitas e, às vezes, uma colheita mal feita, uma amostra mal preservada ou uma amostra mal enviada pode não ter valor em termos de prova.”
Todos os anos, Teresa Maria Magalhães repete aos seus alunos de quinto ano de Medicina que têm de improvisar muito a fazer colheitas de vestígios numa urgência. “É suposto existirem kits para estas colheitas nos serviços de urgência hospitalares. Mas depois, nem sempre chegam a todos e nem sempre lá estão, de facto, os kits. E os médicos têm que arranjar material e embalagens para remeter, etc., etc.. Isso falha um bocadinho, ainda. Ao passo que, se for um perito do Instituto de Medicina Legal, ele tem o material sempre todo.”
Da condenação à pena, suspensa
Já passou várias vezes pelo seu agressor na rua. Hoje, Carlota já não vira a cara para o lado quando passa pelo enfermeiro que abusou dela nas urgências do hospital público de uma cidade pequena da região do Alentejo, há 14 anos. Carlota avançou com queixa, que seguiu para tribunal e resultou em condenação. Considera que apenas ganhou o caso porque o agressor era alvo de um outro processo judicial colocado pelas mesmas razões por Ana. Neste caso, há ainda o testemunho em julgamento de audiência por parte de Joana, a terceira protagonista desta história: igualmente vítima de coacção sexual nas urgências daquele hospital.
Um meio pequeno, Ana e, principalmente, Carlota foram vítimas de ameaças e bullying. Vaiavam-nas, apelidavam-nas de mentirosas à entrada e à saída tribunal. Passavam pela casa de Carlota e gritavam-lhe impropérios. A família dele fez-lhe igualmente ameaças. Diziam-lhe, por vezes, se não tinha vergonha de “estar a estragar a vida” ao rapaz. A sala de audiências estava sempre cheia. Entre a apresentação da queixa e o acórdão da Relação — ele recorreu da decisão condenatória da primeira instância —, decorreram sete anos.
“A minha mãe diz-me que sou um cão farejador. Sei as pessoas todas que estão na rua. Se são homens, se são mulheres, tudo. Consigo analisar tudo o que está a acontecer”, relata Carlota, hoje com 32 anos, num pequeno jardim da cidade. Passou uma década e meia desde que foi vítima de coacção sexual e ainda se emociona. Começa a chorar, sente-se envergonhada por fazê-lo. “Mudei muito a minha vida. Sou uma pessoa mais espiritual. Trabalho muito o ‘aqui e agora’, o que me dá muita consciência de tudo. Mas sei que é sempre uma coisa de controlo, para perceber se estou segura ou não. Em todos os lados.” Um dia, começou a perder a força nas pernas. Foi às urgências, levada pela irmã. “Uma pessoa vai ao hospital e sente-se segura. Está mal e vai lá para ficar bem”, diz Carlota. E começa a relatar: “O enfermeiro entrou e fechou a cortina. Não desconfiei.”
Coloca-se aqui a questão da privacidade versus a da segurança. “Uma urgência é, por definição, um local muito movimentado, com pessoas sempre à procura de algo ou alguém, pessoas sempre a abrir portas que estão fechadas, a abrir cortinas que estão corridas”, explica Mário Macedo, enfermeiro, coordenador da unidade epidemiológica e saúde pública hospitalar no hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, anteriormente o hospital Amadora-Sintra. “Não quer dizer que não possa acontecer, mas não é um ambiente tão propício a isso. Eu imaginaria este tipo de situações a acontecer mais em internamentos, por exemplo.”
O enfermeiro tirou sangue a Carlota e, de seguida, disse-lhe que ia dar lhe medicação para as dores. Em tribunal, ficou provado que foi drogada. “Temos visão e audição e perdemos tudo o que seja força física. Ficamos bloqueadas”, explica Carlota. “Ele avisou-me, dizendo: ‘não se preocupe que vai começar a sentir-se leve e está tudo bem. É para relaxar’. Ele saiu e depois voltou.” O enfermeiro usou as mãos de Carlota para se masturbar enquanto lhe repetia ao ouvido expressões como: “Gostas de sexo anal?”; “Gostas de broches?”. “Tenho a ideia de que só tinha os olhos abertos, como se estivesse a gritar, mas não conseguia fazê-lo. Tenho a certeza de que, se ele não drogasse as pessoas, não tocava em ninguém, muito menos em mim”, diz, assertiva. “Quando começou a tocar no meu corpo, pensei: ‘eu quero morrer neste momento’. E senti uma força em mim que fez com que apagasse.” Ana foi parar às urgências do mesmo hospital com uma cólica renal. Estava a soro numa sala onde se encontravam outras pessoas igualmente a soro. Começou, entretanto, a ficar tarde e decidiram deitar os pacientes em macas. Ana fez depois um raio-X e não quiseram dar-lhe alta sem fazer uma ecografia, que apenas poderia ser feita de manhã. O enfermeiro veio e correu a cortina à volta da sua maca. “Nesse dia, tinha o braço de fora. De repente acordo, olho para cima e vejo o enfermeiro, de bata branca. Agarrou-me na mão e colocou-a em cima do sexo dele. E disse-me ‘agora feche os olhos porque vai dormir’. Confesso que fechei imediamente os olhos, como quem diz ‘mas o que é que se está aqui a passar?’. E apaguei.”
Ana chegou a comentar na brincadeira com as amigas que, se fossem às urgências do hospital, havia lá um enfermeiro que não se importava que lhe pusessem a mão no sexo. Até que uma amiga do trabalho lhe disse que não achava aquilo normal. O mesmo lhe disse outra amiga, esposa do enfermeiro-chefe do hospital. “Outra coisa que as minhas amigas repararam é que eu passava a vida a lavar as mãos”, lembra Ana. “Foi aí que comecei a cair em mim.”
Por seu lado, Carlota ficou revoltada assim que se lembrou do que lhe tinha acontecido nas urgências, ia já dentro do carro da irmã de volta a casa. Regressaram de imediato ao hospital, iam apresentar queixa. “Cheguei lá e disse a uma enfermeira que queria fazer queixa. Ela disse me, com uma enorme arrogância, para começar a falar enquanto rasgava um papel qualquer para anotar”, conta Carlota. “Se eu já estava completamente perdida da minha vida, levar com aquela insensibilidade matou-me.” Fez a queixa e voltou para casa. A mãe reuniu a família toda, vieram os tios todos a casa. “Isto para mim foi uma onda de amor muito grande. Mas, ao mesmo tempo, uma vergonha enorme.” Carlota tomou banho, sentia-se suja. A família reunida decidiu que Carlota iria à polícia. Era já noite quando entrou numa esquadra da PSP. O agente, diz Carlota, ficou em choque e sentiu a sua dor. Veio a ser sua testemunha em tribunal. Ainda naquela noite, levou-a ao hospital para lhe fazerem análises ao sangue. “Não deixaram a minha família entrar. Então, ele ficou ao meu lado o tempo todo, nunca me deixou sozinha. Foi de valor”, emociona-se Carlota.
“Quando chegámos lá, ele disse: ‘A vítima fez uma queixa de que foi abusada sexualmente neste hospital pela tarde e nós queríamos fazer a perícia de análise de sangue para ver que tipo de droga é que se trata, porque isto em tribunal conta’.” A médica a quem o disse alegou que Carlota podia ter já chegado ao hospital drogada. “O polícia passou-se. Disse que aquilo era uma pouca-vergonha. Fizeram-me análises à urina e ao sangue. Entrei na casa-de-banho sozinha e este agente esteve sempre à porta. Senti-me segura.”
Carlota passou três anos em audiências de julgamento. “Foram os piores anos da minha vida”, diz. Nunca andava sozinha e estava sempre a olhar para todo o lado. “Foi um misto de vergonha, de humilhação, de revolta, de injustiça. Tudo ao mesmo tempo. Até porque ele pôs um processo de difamação contra mim.”
O Estatuto da Vítima, aprovado em Setembro de 2015 e em paralelo com o Código de Processo Penal (CPP), estabelece que a inquirição às vítimas deve ser realizada por uma pessoa do mesmo sexo, salvo se for efectuada por um magistrado do Ministério Público ou por um juiz. Devem, além disso, ser tomadas medidas para que o contacto visual entre as vítimas e os arguidos seja evitado na sala de audiências. Uma vítima especialmente vulnerável pode, até, prestar as suas declarações previamente, gravadas e usadas para “memória futura”. “Até há bem pouco tempo, os juízes entendiam que era indispensável à descoberta da verdade as vítimas repetirem o seu depoimento em julgamento. Essa prática, felizmente, está a inverter-se”, refere a procuradora da República Helena Leitão. “Tendencialmente, as coisas vão evoluir no sentido positivo. Mas estes processos demoram tempo. Nem as leis nem mentalidades evoluem rapidamente. Também poderá haver a tendência do legislador para procurar salvaguardar a estabilidade da certeza do Direito, nomeadamente do direito Penal e processual penal.”
Carlota sentiu muita vergonha, em tribunal. “Eu própria sentia que havia um julgamento meu por estar ali. Toda a gente sabia quem eu era, a exposição…”, explana. Algumas pessoas chegaram a cuspir-lhe à saída da audiência. “Em tribunal foi horrível. Eu conseguia ver o agressor de frente. Via-o a rir-se enquanto eu falava. Era como se estivesse numa esplanada.”
O caso de Carlota e de Ana resultou em condenação, em quatro anos de pena de prisão suspensa e em pagamento de indemnização. O arguido recorreu da decisão, mas o tribunal da Relação aumentou-lhe a pena suspensa para cinco anos e o valor da indemnização a pagar duplicou. “É muito raro que a primeira condenação de um agressor em processo crime seja em pena de prisão”, contextualiza Helena Leitão. “Entre pena de prisão ou pena a cumprir em liberdade, o art. 70º do Código Penal português é claro quando estipula que se deve dar preferência à segunda, sempre que esta realizar ‘de forma adequada e suficiente as finalidades da punição’. Ou seja, sempre que um juiz entender que é suficiente para a defesa da ordem pública, bem como para a socialização do agressor, a aplicação de uma pena a cumprir em liberdade”, explica a procuradora da República. “Em termos sistemáticos, a lei penal está estruturada assim: deve-se, sempre que possível, dar uma segunda oportunidade ao agressor. Mas há manifestamente casos e tipos de crime em que não se justifica dar uma segunda oportunidade. Acima de tudo, a vítima tem que sentir que o sistema legal e social a protege.” Depois do abuso, Ana deixou de sair de casa. Hoje, vive noutra cidade, por questões de trabalho. “Não tive mais namorados, depois dessa altura. Tive um, quando comecei a fazer psicoterapia, mais ou menos da minha idade. Não sei se se pode chamar namorado... Não sei. Já não está na minha vida, de todo. E a quem eu tive imensa dificuldade em contar, mas precisava de contar.”
Carlota sofre ainda hoje de vaginismo. “Há causas de problemas sexuais nos sobreviventes adultos que estão relacionadas com a dissociação mente-corpo ocorrida durante o abuso sexual, defesa que surge como forma de prevenir a dor durante o acto sexual, mas que acaba por prevenir também o prazer”, explica o psicoterapeuta Rui Ferreira Nunes. “Outro mecanismo é deixar de ter sensibilidade em diferentes partes do corpo, como se estivessem anestesiadas, nomeadamente em posições ou práticas sexuais associadas ao abuso. Podem até ter vaginismo, a dor na penetração, uma sintomatologia psicológica, mas que é sentida como dor física, como impedimento”, diz.
“Ganhei vaginismo. É uma dor emocional que ficou ali presa, não é real. Mas eu sinto dor”, diz Carlota. “Não tinha antes e ganhei depois. Por isso, sei que fiquei com uma grande dor emocional – e o corpo somatiza. Nunca andei em médicos para comprová-lo, mas eu própria sinto o meu corpo e conheço o meu corpo de antes e depois.”
Com Ana Patrícia Silva, do meio digital Setenta e Quatro.
* Todos os nomes das vítimas são fictícios.
** O Ministério da Saúde e a Polícia Judiciária foram contactadas várias vezes para responderem às questões do PÚBLICO e do Setenta e Quatro, mas não obtivemos resposta até à data de fecho deste texto.
Linhas de apoio para vítimas de violência sexual:
APAV (LAV): ligue para 116 006 (das 8h às 22h)
AMCV Apoio à Vítima de Violência Doméstica: ligue para 800 202 148 ou envie SMS para 3060 (24h)
Quebrar Silêncio: ligue para 910 846 589
Se estiver com pensamentos que atentem contra a sua própria vida, ligue para:
EMERGÊNCIA
112
SNS24
808 24 24 24
SOS VOZ AMIGA
(15.30 – 00.30)
213 544 545
912 802 669
963 524 660
TELEFONE DA AMIZADE (16.00 – 23.00)
222 080 707