A última pesca “boa” foi em meados de agosto de 2020. Os pescadores da comunidade Belo Monte do Pontal, no município de Anapu (PA), passaram sete dias pescando. Eles subiram o rio em canoas, como fazem tradicionalmente, até a Volta Grande do Xingu, área de 100 km no rio Xingu (PA), logo abaixo da usina, que foi barrada para abastecer a hidrelétrica de Belo Monte.
Nessa primeira pescaria, depois de meses do período de interdição para respeitar a reprodução dos peixes, o chamado “defeso”, voltaram da empreitada com 200 quilos de peixes, que abasteceram as necessidades da comunidade e geraram alguma renda para os envolvidos.
Em setembro, com o rio Xingu mais seco, os mesmos esforços e investimentos da comunidade renderam somente 100 quilos de peixe. Nas saídas seguintes, os comunitários tentaram ir de carro até outros locais de pesca, já que o acesso em canoa aos pontos de pesca estava impossibilitado pela seca. O nível das águas já estava tão baixo, que não foi possível manter a pescaria.
“Depois de agosto, foram só tendo prejuízo”, conta Ana Laíde. Ela mesma nasceu em uma comunidade tradicional pesqueira, e trabalha no Movimento Xingu Vivo como articuladora política e na formação de educação social. A tarefa para a qual foi chamada é desafiadora: trabalhar para estreitar os laços entre comunidades ribeirinhas e povos indígenas impactados pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte.
Ao longo do segundo semestre de 2020, a chamada piracema, período de reprodução dos peixes, não ocorreu na Volta Grande do Xingu, casa de 3 povos indígenas e 25 comunidades ribeirinhas. Segundo os moradores, o motivo é que Belo Monte desvia água demais para o reservatório da usina. Nos três primeiros meses de 2020, 66% da vazão de água recomendada para Volta Grande foram desviados para o funcionamento de Belo Monte, segundo dados da ANA.
“Na ausência da piracema, se perde a vida do rio, e a esperança de povos que vivem dessa cultura, que é a pesca”, desabafa Ana Laíde.
Uma das principais preocupações de Ana Laíde é, justamente, a falta de alimentos de populações dependentes da pesca em meio à pandemia. “O que eles oferecem pra gente é mortadela. Só embutidos. A soberania alimentar está desse jeito”, afirma Laíde.
Podcast Terra Arrasada
Enfrentar a pandemia em meio aos impactos causados por Belo Monte é precisamente o tema do último episódio do podcast Terra Arrasada, que acompanha os impactos da pandemia na Amazônia, investigando a pergunta: como a destruição histórica dos territórios amazônicos permitiu que o novo coronavírus tivesse uma dispersão tão letal na região?
O episódio Os atingidos por Belo Monte aborda como populações ribeirinhas expulsas há cerca de seis anos de suas casas enfrentam a pandemia enquanto ainda tentam reorganizar suas vidas: sem acesso ao local onde trabalham e de onde tiravam o alimento básico para comer e fonte de renda, os peixes.
Escute abaixo o episódio completo do podcast sobre como os impactados por Belo Monte enfrentam a pandemia:
Falta de água persiste em 2021
Em novembro do ano passado, cerca de 150 pessoas de cinco municípios afetados por Belo Monte fecharam a rodovia Transamazônica (BR-230), na altura do km 27, em protesto de 5 dias contra a Norte Energia, empresa responsável pela hidrelétrica de Belo Monte. Elas exigiam a liberação, até março de 2021, da vazão de água suficiente para possibilitar a piracema.
Segundo Ana Laíde, Belo Monte liberou água, mas não o suficiente: “Eles soltaram água. Mas você sabe que essa situação é muito morosa. Em novembro era para ter água na Volta Grande. Era para os frutos estarem caindo das árvores e alimentando os peixes. Muito triste que esse ano não vai ter piracema. Vai ter alguns peixes desovando, mas já vamos para o quarto ano consecutivo sem piracema no rio.”
O que diz o Ministério Público Federal
O Ministério Público Federal (MPF) do Estado do Pará enviou um ofício em 16 de dezembro do último ano ao Ibama. O documento solicita que o Ibama, na condição de polícia ambiental, em face aos descumprimentos de decisões administrativas pela Norte Energia, garantisse um nível de água suficiente para a piracema na Volta Grande do Xingu, mediante maior liberação de água por Belo Monte.
Por meio de sua assessoria de imprensa, o MPF-PA afirmou que o Ibama respondeu ao ofício, mas que “o conteúdo das informações fornecidas pelo Ibama [ainda] está em análise” pelo MPF.
Ainda em dezembro, o MPF publicou em nota no seu site, que após um impasse com a empresa sobre o hidrograma a ser mantido para a Volta Grande do Xingu, foi aplicado “um hidrograma provisório, com vazão máxima de 14 mil e 200 metros cúbicos para alimentar os ecossistemas do rio. A empresa não cumpriu esse hidrograma, tentou derrubá-lo na Justiça, mas perdeu. Agora, faz pressão para que possa desviar mais água em 2021”.
O Movimento Xingu Vivo, por sua vez, solicita uma vazão ainda maior para manter as condições de vida na Volta Grande do Xingu: 16 mil metros cúbicos.
Procurada, a Norte Energia não respondeu às perguntas enviadas até a publicação desta matéria.
A disputa ao redor do hidrograma a ser mantido no curso natural do rio parece uma situação ainda longe de ter fim.
Sobre Terra Arrasada
Terra Arrasada é um podcast sobre como o novo coronavírus impactou a vida de populações da Amazônia. É uma série com cinco episódios, contados por indígenas, quilombolas e ribeirinhos de diferentes partes da Amazônia. Eles explicam como a história de destruição da região onde vivem se relaciona com o impacto cruel do coronavírus em 2020. Esse é um projeto do Le Monde Diplomatique Brasil, com apoio do Rainforest Journalism Fund em parceria com o Pulitzer Center. Uma produção de Fábio Zuker e Trovão Mídia.
Veja a série completa: https://diplomatique.org.br/terra-arrasada/