Porto Alegre e Canoas (RS) — Uma linha horizontal de cor terrosa nasce nas primeiras edificações que surgem, assim que ingressamos no Sarandi, na Zona Norte, em Porto Alegre. Este é um dos bairros mais populosos da cidade, com 91.366 habitantes, conforme censo de 2010. O traçado expõe diferentes níveis de altura marcadas nas paredes desde maio de 2024, desafiando a credulidade de quem não vivenciou na pele a elevação da água no teto das residências. Ou acima deles.
É julho e estamos no bairro mais afetado pela enchente de maio na capital gaúcha (26.042 pessoas, conforme a Prefeitura de Porto Alegre), consequência do intenso volume de chuva que afetou 2,3 milhões de pessoas no sul do Brasil. As chuvas fizeram com que diversos bairros da região metropolitana ficassem sob a água durante mais de duas semanas. Ao todo, a enchente deixou 806 pessoas feridas, 29 desaparecidas e 182 mortes confirmadas. Segundo o pesquisador André Augustin, do Observatório das Metrópoles, as regiões mais atingidas na região metropolitana foram aquelas que concentram maior número de moradores com baixa renda.
No dia 3 de maio, a água rompeu em dois pontos do Dique Sarandi, que represa o Rio Gravataí, tomando proporções nunca antes vistas no bairro homônimo, na periferia de Porto Alegre. São as retas estratificadas que nos conduzem até o apartamento do aposentado Carlos Gustavo Santos Almeida, 53, e a professora de educação infantil e pedagoga Vera Regina de Almeida Almeida, 50.
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“Quando eu estou em casa e olho para a janela não consigo mais ver a rua. Eu só vejo a água, sabe? Na minha mente, vejo aquele monte de água subindo, subindo, subindo”, compartilha Carlos, que foi resgatado no dia 5 de maio com a esposa, a cadela e os gatos, de barco, pela sacada. A família mora há um ano e meio em um prédio, na Vila Elizabeth. Dos quatro apartamentos térreos, dois estão com as janelas e as portas abertas. Ali, tudo ficou submerso e muitas casas foram invadidas pelas águas até o nível do telhado.
Era em um dos apartamentos térreos que morava Ubaldina Oliveira Lenz, 76. Foi a sua neta, moradora de um apartamento em frente ao seu, que avisou sobre o alagamento no bairro. A avó não acreditou muito, mas decidiu seguir as orientações da neta. “Eu tinha acabado de tomar banho. Saí com a roupa do corpo e os documentos. Foi tudo muito rápido. Perdi tudo. Todo mundo perdeu, né?”.
Ubaldina diz que não tinha muito: a cama, um armário onde guardava objetos pessoais, o fogão, as roupas eram guardadas em um baú. “Agora, vamos recuperando aos poucos, mas a gente não tem grana para bancar.” Por enquanto, Ubaldina está morando com a neta e o bisneto no segundo andar. Antes de retornar ao Sarandi, Ubaldina ficou cerca de dois meses fora. Primeiro, na casa de um de seus seis filhos e, depois, na casa de uma amiga da neta, junto desta. Os móveis que hoje compõem o apartamento no qual avó e neta dividem foram doados por amigos e parentes.
No apartamento ao lado, Vera e Carlos contam que ficaram cerca de um mês fora de casa. O parente ao qual poderiam pedir abrigo na época, que mora no município de Campo Bom, também sofria com alagamento, em decorrência das chuvas. Em um primeiro momento, o casal foi para um abrigo de voluntários junto a outras 18 famílias, localizado em uma escola, na Zona Norte. Mas a adaptação foi difícil para Carlos, que tem transtorno bipolar e ficou sem a sua medicação. Não conseguia dormir, nem se sentia seguro.
Posteriormente, o casal foi transferido para outro abrigo, que acabou encerrando as atividades em seguida. Em vez de se alojar em um terceiro lugar, o casal optou por pagar uma pousada durante duas semanas. O custo foi o equivalente a dois meses de aluguel do apartamento onde vive. “Eu queria vir embora pra casa. Meu negócio era vir pra casa”, lembra ele.
Silêncio nas casas e nas ruas
Quando Carlos e Vera retornaram à Vila Elizabeth, logo perceberam que ela não era a mesma. No prédio onde moram, dos oito apartamentos, apenas três estavam ocupados. Nas casas dos quarteirões próximos, janelas e portas fechadas, nenhum sinal de movimentação, exceto naquelas em que pequenos grupos, ou uma pessoa apenas, usavam mangueiras, lava-jatos, vassouras e baldes para retirar as camadas de lama.
Este trabalho exige várias etapas, o que pode levar dias. Em frente a algumas residências, ainda há montes de entulhos. “Nós dois não perdemos tudo. Eu fico imaginando quem perdeu toda a casa. Não só os móveis, mas documentos, coisas de afeto pessoal. Isso foi tudo jogado fora. Quer dizer, você transformou o sentimento das pessoas em lixo. A afeição em lixo”, lamenta o aposentado. “Tudo é destruído de maneira rápida por desinteresse do poder público com o cidadão. Porque não podem dizer que é culpa nossa, não. É uma questão de estrutura política”.
Já se passaram dois meses desde a enchente quando a reportagem do Nonada esteve na região. Os moradores do bairro que ainda não voltaram estão em casas de parentes ou abrigos. Visitam o bairro, abrem as casas para a retirada da sujeira incrustada nos cômodos e logo partem, pois a permanência no bairro não sustenta, por enquanto, a retomada da rotina. A noite é silenciosa. O comércio local foi afetado. Para se chegar nos estabelecimentos que não foram fechados, é preciso caminhar distâncias maiores. Além disso, ainda há resquícios da água da enchente margeando as calçadas, deixando um forte odor no ar.
Ubaldina comenta que caminhões da prefeitura retiraram parte dos entulhos e do barro, mas, mesmo assim, uma porção da água permaneceu. O receio da moradora é que as poças atraiam o mosquito da dengue e que as bocas de lobo não sejam limpas, podendo provocar eventuais alagamentos. “Não era assim. Era tudo sequinho, limpinho. Tinha até árvore. Aquela ali está seca, a enchente matou. Agora é essa sujeira aqui”, reclama Ubaldina enquanto nos acompanha na rua.
Carlos e Vera contam que, até o dia da visita da reportagem, nenhum agente de saúde havia lhe contatado ou aos vizinhos próximos. “É como se ninguém aqui tivesse problema. Você não tem um posto médico perto, você não tem nada. Abandonados nós já estávamos, só que agora estamos abandonados e em poucas pessoas. O abandono é o natural.”
Carlos, Vera e Ubaldina resgataram os R$ 2 mil repassados pelo governo do Rio Grande do Sul aos atingidos pelas enchentes, e os R$ 5,1 mil, do Auxílio Reconstrução, encaminhados pelo governo Federal. Para além dos recursos pontuais, e que não dão conta de suprir os prejuízos de grande parte dos afetados nos bairros da periferia de Porto Alegre, o sentimento e a paisagem são de descaso.
O futuro é hoje
Planos econômicos e propostas de reconstrução de cunho ufanista têm sido difundidas não apenas pelas diferentes esferas de governo, mas também no discurso midiático. Carlos reconhece a importância de se projetar recomeços, assim como a resiliência por parte dos atingidos. O ser humano, segundo o aposentado, procura melhorar a vida após um trauma, mas é difícil alcançar este patamar. “É muito fácil falar, na propaganda, que o Rio Grande do Sul vai se reconstruir. Os grandes latifundiários não vão perder nada: vão ter subsídios de juros, perdão de dívidas. Mas a minha fatura do cartão de crédito, o banco não quer saber se minha casa foi alagada. A minha conta de telefone, com um mês parado, sem eu poder usar, veio. É sempre os grandes ganhando e os pequenos ficando por isso mesmo.”
Conforme a Agência das Nações Unidas (ONU), 2,3 milhões de pessoas foram afetadas pela catástrofe climática no estado; 422 mil foram forçadas a se deslocar (dados de junho de 2024). Deixar o lugar em que se mora ou permanecer nele, nem sempre trata-se de uma escolha deliberada após um desastre climático. Muitos fatores parecem influenciar, desde a estrutura financeira para se estabelecer em outro bairro ou cidade, até os laços afetivos que se criam na comunidade.
Vera diz que ela e Carlos estão tentando se mudar, no entanto, já observou que o valor dos aluguéis em bairros da Zona Norte não atingidos pelas águas, como Rubem Berta e Jardim Leopoldina, aumentou. Indagados sobre qual o significado da palavra futuro, Vera dispara. “Futuro? Futuro é sair daqui. É o que eu penso. Depois que nos organizarmos vamos embora para o nordeste. Eu não quero mais ficar aqui no Sarandi.” Carlos, por sua vez, diz não alimentar muitas perspectivas. “O meu futuro é hoje”.
Já a vizinha Ubaldina, construiu uma antiga e forte ligação com o bairro. A sua mãe comprou uma das primeiras casas construídas no Sarandi, entre o final da década de 1950 e início de 1960. Ela se casou e criou os seis filhos no bairro. “Eu gosto daqui, é bom de morar. Agora, tomara que não dê outra [enchente]. Senão piora e a gente perde que não tem.”
Vista para as ruínas: uma assolada Mathias Velho
Antes de iniciarmos a entrevista, a dona de casa Lúcia dos Santos Schwaab, 62, pede licença para apoiar uma bombona de água mineral na porta, que não está fechando bem. “As portas ficaram ruins por causa da água”, justifica. Fomos visitar o bairro Mathias Velho, em Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, um dos mais afetados no município pelas enchentes. Foi dali, que o Brasil e o mundo acompanharam imagens que revelaram a crueza das mudanças climáticas e o despreparo do poder público em lidar com as suas consequências.
Faltou pouco para que a enchente alcançasse o forro da sua casa. Nas ruas, o alagamento chegou a 3 metros. No dia 2 de maio, quando Lúcia e o marido, o aposentado Paulo Araí Schwaab, 66, perceberam que a água estava subindo pelo ralo e bueiros da rua, buscaram abrigo na casa ao lado, da irmã de Paulo, de dois pisos. Além do casal, estavam o pai de Lúcia, 84, a mãe de Paulo, 88, os dois filhos adultos, Sandro e Eduardo e a nora Bárbara. Mas horas depois tiveram que ser resgatados de barco, a água já se aproximava do andar superior.
Lúcia e Paulo ficaram fora de casa por dois meses. Durante este período, abrigaram-se na casa que os dois ainda mantêm em sua cidade natal, em Bom Princípio, localizado a 76 Km de Porto Alegre. O retorno contou com o apoio de familiares, que fizeram um mutirão de limpeza. “A casa estava pura lama. As coisas todas destruídas, os móveis tombados dentro de casa”, conta Lúcia. A geladeira e o fogão foram os únicos utensílios que se salvaram após os reparos necessários.
Enquanto conversamos, eles mostram a cozinha já montada, fruto de doações de familiares. O gato malhado, o Mourisco, se aproxima e pede carinho. “Ele é um sobrevivente”, diz Lúcia sobre o felino adulto que apareceu há pouco mais de um ano no pátio da casa e nunca mais foi embora. Como a água subiu rápido demais, a família priorizou a retirada dos pais idosos, não tendo tempo para resgatar o felino, que, durante os dois meses, foi alimentado por voluntários.
A casa dos dois é uma das poucas do bairro que não exibem uma montanha de entulhos na calçada, graças à oferta de um amigo, que retirou a sujeira com um caminhão. Caso contrário, provavelmente estariam compondo o cenário de grande parte das ruas da Mathias Velho: uma cordilheira extensa, formada por restos de móveis, pertences pessoais e eletrodomésticos. No dia em que visitamos o bairro, alguns caminhões da prefeitura faziam a limpeza em uma rua próxima. Mas basta caminhar poucos metros por ali para perceber que a demanda é muito maior do que as máquinas parecem dar conta.
Na quadra onde mora o casal, um bar, uma loja de vestuário e um bazar estão fechados. A avenida Rio Grande do Sul, a poucos quilômetros dali, portanto, mais distante, passou a concentrar um número maior de estabelecimentos comerciais. Como Lúcia e Paulo receberam cestas básicas, compram apenas legumes, verduras e carne. “Até leite em pó a gente está usando, assim a gente não precisa ir até lá para comprar”.
Poucos moradores circulam pela rua e um pequeno grupo manuseia uma lava-jato contra as paredes de uma casa que carrega os traços do alagamento. “Parece que aqui está estagnado, não sei, uma aparência triste. Parou tudo. O pessoal anda meio perdido. A gente nota que não é mais a mesma Mathias. Vai demorar um pouco para voltar ao normal”, comenta Lúcia. Ela fala que, nas primeiras semanas, ficou mais abalada, mas que, agora, faz de tudo para manter a calma. “A gente entende que todo mundo está passando por dificuldade. Então, cada um precisa dar força para o outro. Se um cai, o outro também cai. Tem que ajudar”.
Em eventos extremos, existe um sério risco de dirigir às pessoas que vivenciam situações traumáticas um olhar condescendente, depositando sobre as suas histórias uma visão distorcida e pouco empática sobre como cada uma lida com os problemas enfrentados. Há muitas camadas subjetivas envolvidas sobre o que ocorreu no Rio Grande do Sul. Posto isto, observamos que muitas pessoas vítimas da enchente enfatizam o empenho na sua superação e até mesmo minimizam o tipo de experiência que tiveram no mês de maio. Lamentam com reserva a sua condição, visto que muitos outros, conforme o julgamento de cada um, contaram com um destino mais trágico do que o seu.
“Não abandono o meu bairro”
É neste ambiente que muita gente pensa em ir embora. Paulo escuta pela vizinhança pessoas comentarem sobre o desejo de deixar Mathias Velho. Contudo, após a enchente, as chances de atrair compradores das casas caíram, os imóveis desvalorizaram. “Mas a maioria está tentando recomeçar. O problema é pensar se pode acontecer de novo, né? Ninguém sabe quando”. Lúcia e Paulo moram há 41 anos no bairro, que cresceu e mudou bastante desde então. A vontade é a de continuar vivendo ali. “A gente se acostumou, foi fazendo amizade. A vizinhança também é muito boa. A vida da gente é aqui. Até onde dar a gente vai ficando.”
É o que pensa o aposentado Pedro Machado de Aguiar, que, de seus 68 anos, há 50 mora na Mathias Velho. “Eu quase nasci aqui, não vou abandonar o meu bairro. Gosto das amizades.” Ele havia retornado para casa há 15 dias. Fazia cerca de um mês que estava abrigado na casa da sua filha, no bairro Estância Velha, região de Canoas que não foi atingida pela água. Por outro lado, o aposentado percebe que há moradores que não pretendem ficar mais. “Estão vendendo casa barata e se mandando. Não sabem quando vai dar [enchente] de novo.” O fechamento de estabelecimentos comerciais também dá sinais de que não retornarão suas atividades. “Conheço muito bar por aí, e eles estão fechando.”
O irmão de Pedro, Sérgio Marinho, 66, também acredita que grande parte das pessoas que foram embora não volta mais. Os impactos da enchente foram de proporções incalculáveis e que se revelaram ainda mais quando a água baixou. “Deu vontade de virar as costas e sair correndo. Você viu como ficaram essas casas aí? Imagina isso aí (lama) dentro de uma casa. E o fedor, que agora não é tanto. Teve gente que não aguentou ver o lugar onde mora daquele jeito”, lamenta Sérgio.
Sobre o futuro do bairro, Sérgio é categórico: “Como é que vai ser daqui para frente? Pode escrever aí na tua matéria que, em setembro, isso aqui vai encher de novo. Vai cair muita chuva. Pode ser que a água não suba tanto quanto agora, mas vai alagar”. O irmão Pedro discorda, acredita que o ocorrido em maio foi um caso extremo. Indagado sobre o seu maior desejo para o bairro Mathias Velho, Pedro responde rapidamente: “estar vivo. A minha família, meus amigos todos. A gente poderia ter morrido.”