A presença do fruto na dieta regional é tão antiga quanto à ocupação da floresta – e seu uso tem a ver com o manejo racional do fogo.
Os coletores se preparam para partir depois de acondicionar o açaí em sacas grandes, de 28 quilos cada. Com os fardos sobre os ombros, os homens deixam a mata enquanto as mulheres ajeitam paneiros, peconhas, latas e demais apetrechos da lida. Por fim, elas dobram as lonas que foram abertas rente ao solo para a debulha e separação do fruto da palmeira amazônica.
Os ribeirinhos depositam cuidadosamente as sacas dentro do barco, que seguirá viagem na próxima hora. Os paneiros, cestos trançados de forma artesanal, estão carregados de um açaí miúdo, o chamado chumbinho.
Mais um dia chega ao fim no Arraiol, comunidade do arquipélago do Bailique, um grupo de oito ilhas na região da foz do rio Amazonas, a 200 quilômetros de Macapá. O açaí coletado será processado pela Cooperativa dos Produtores Agroextrativistas do Bailique, a Amazonbai. Trata-se do primeiro empreendimento comunitário do Brasil com foco no açaí a conquistar a certificação FSC (Forest Stewardship Council) de manejo florestal, cadeia de custódia e procedimento de serviços ecossistêmicos. O açaí Amazonbai possui também um atestado de Produto Vegano e o Selo Amapá, que promove a valorização dos produtos nativos do estado.
Essa história de sucesso na produção e comercialização de um fruto emblemático da Amazônia começou a tomar forma em 2013, quando agricultores, pescadores e extrativistas se reuniram para instituir o Protocolo Comunitário, que permitiu a gestão da operação pelos moradores com base na força da identidade sociocultural local. “No Bailique, muitos homens e mulheres detêm o conhecimento tradicional”, subscrevem os habitantes em um trecho do documento. São pessoas que conhecem a fundo as plantas da região, utilizando-se da biodiversidade para a alimentação e a cura. “Para a manutenção de tais saberes, é preciso ter a garantia plena do território e dos recursos naturais”, prossegue o texto.
“Eu descrevo a floresta como um lugar de aconchego. Ela me deu tudo o que tenho. Minha relação é de imenso carinho com esse lugar e por isso o trato com tanto respeito”, conta Manoel Miracy dos Santos Filho, o Miro, um dos sócio-fundadores da cooperativa, criada em 2017.
Miro atravessa a passarela de madeira, observando o correr do rio em aparente comunhão com o movimento das nuvens. Céu e correnteza se tocam na linha do horizonte. A tarde de trabalho avança noite adentro. Ao pisar na varanda, o pai de cinco filhos tira as botas antes de entrar em casa, onde irmãos, avós, tios e primos circulam entre a sala e cozinha à espera do jantar. Um dos jovens liga a televisão e a parentada se espalha pelo chão. A comida é servida: mel, queijo de búfala, frutas, sementes, ervas e tigelas de açaí batido, farinha e peixe fresco. Tudo extraído e beneficiado na comunidade e arredores.
A rede de abastecimento de energia elétrica não chega ao Arraiol. Geradores e placas de luz solar compõem o aparato que gera a limitada iluminação noturna. São variadas as ocasiões em que o uso do fogo ainda serve como auxiliar para orientação dos moradores na penumbra: lamparinas costumam ser dispostas sobre mesas, cômodas e parapeitos de janela nas casas mais afastadas da vila. Recostado no colo da esposa, Miro comenta com os demais sobre a partida da carga em direção a Macapá: “O barco passou a semana parado. Muita chuva. Só hoje conseguimos arrumar o transporte do açaí”.
Os desafios do clima
Os reflexos da crise climática são evidentes nas comunidades da foz do maior rio do mundo, que sempre dependeram da previsibilidade da natureza para subsistir. Em 2022, a lançante ou “água grande”, como é chamada ali a maré alta, chegou bem antes do habitual. Na estação das chuvas, o inverno amazônico, a precipitação excessiva tem causado inundações precoces, alagamentos desproporcionais de roçados e alteração do calendário de coletas. No período da seca, ou verão, o oceano avança sobre o Amazonas, que sofre constante diminuição de seu fluxo devido a impactos ao longo de seu curso.
Fenômenos naturais como a erosão e a salinização da água têm se intensificado nos últimos anos. A Geosat, empresa europeia que monitora a zona estuarina do Amapá em parceria com os cientistas do Núcleo de Desenvolvimento Territorial Sustentável da Universidade Estadual do Amapá, fornece imagens de satélite da área que engloba toda a foz, de Macapá ao Sucuriju. Para Gabriel Araújo da Silva, coordenador-geral do projeto Economias Comunitárias Inclusivas, os registros coletados desde 1999 evidenciam uma mudança de dinâmica das águas. “A elevação e permanência excessiva da água do mar sobre os territórios altera a direção do fluxo do rio, que, com força menor, acaba sendo desviado, na íntegra, para o canal Norte, que passa pelo sul do Bailique. Isso faz com que não sobre água para sair pelo canal do Guimarães, que escoa pelo meio do arquipélago”, diz.