Lideranças da terra Kayapó buscam caminhos para eliminar atividade predatória, que impede pesca e traz doenças às comunidades.
João Kayapó, 53, é o novo cacique da aldeia Turedjam, uma comunidade cercada por crateras do garimpo ilegal de ouro. A posse teve palco, tapete vermelho, hino nacional e as palavras de um pastor indígena da Assembleia de Deus.
A festa foi grandiosa. A aldeia de 457 kayapós mebengôkres recebeu mais de 2.000 convidados. Eram indígenas de outras 48 aldeias, dentro e fora da TI (Terra Indígena) Kayapó, no sul do Pará.
Homens e mulheres se pintaram para a posse do novo cacique. Grupos representantes das aldeias convidadas cantaram e dançaram para recebê-lo –os homens com uma voz gutural, as mulheres, com um agudo que se aproxima de gritos, se não fosse música. Os passos cadenciados e a alternância dos grupos preencheram o pátio central de Turedjam.
João recebeu uma faixa verde e amarela, semelhante a uma faixa presidencial. Fez um curto discurso na língua-mãe, que segue firme e predominante entre os kayapós. A partir daquele momento, passou a ser o cacique da aldeia.
“Fui escolhido porque luto pela comunidade”, disse à Folha dentro de sua casa, poucas horas após a posse, realizada em 19 de abril, Dia dos Povos Indígenas.
A realidade da aldeia Turedjam e a posse de João como cacique são emblemáticas.
Sintetizam, ao mesmo tempo, a história da terra indígena mais devastada pelo garimpo ilegal de ouro no país e a complexidade de eventuais esforços para retirada de invasores do território daqui em diante.
Turedjam é uma aldeia cercada por garimpos. A exploração chegou muito perto da comunidade.
O novo cacique é neto de Tutu Pombo, descrito como uma das primeiras lideranças kayapós a fazerem negócios com não indígenas para a exploração de ouro e madeira no território.
Pombo morreu na década de 90. O neto, em um dos primeiros atos como cacique, vai consultar a comunidade sobre a ideia de interromper a permissão de invasores na TI.
“Sobre o garimpo, a minha visão é que tem de acabar”, afirma João. “Todos os caciques têm de ser unidos. Senão os kayapós não aguentam.”
Grupos de indígenas kayapós -ainda que em minoria- permitem a entrada de invasores e participam da exploração ilegal de ouro e madeira, sem compartilhamento dos ganhos com toda a comunidade. Os efeitos, porém, são vastos.
Em Turedjam, nos dias seguintes à posse do novo cacique, crianças kayapós brincavam nas águas barrentas do rio Branco. Nele ninguém pesca mais, porque o garimpo matou o trecho usado pela aldeia.
“O garimpo traz doença, como malária e febre amarela. Traz drogas, pessoas estranhas. O garimpeiro faz o buraco e deixa para trás, vai embora. A gente perde alimentação de caça por isso”, afirmou o cacique recém-empossado da aldeia. Há casos de desnutrição entre crianças e adultos idosos em aldeias com exploração de ouro.
João calcula que 12 escavadeiras do garimpo operam nas imediações da aldeia. Ele quer as máquinas fora da terra indígena. “Não é para o governo queimar, para a ferrugem não ir para o rio.”
Essas máquinas pesadas não entram na área demarcada sem o aval de grupos de indígenas. Uma placa na entrada de Turedjam registra o preço a ser pago por máquina que adentra o território: R$ 2.000 por escavadeira, R$ 400 por caminhão, R$ 200 por caminhonete.
Na aldeia-mãe da TI Kayapó, que fica em outro ponto do território de 3,3 milhões de hectares (o equivalente a quase seis Brasílias), a prática se repete.
Os acessos a Gorotire têm diversas “guritas”, como são chamadas as guaritas improvisadas para o controle do maquinário que explora ouro e madeira ilegalmente. A passagem de escavadeira custa R$ 1.500.
Gorotire tem população de 1.700 indígenas. É uma das aldeias mais tradicionais da terra kayapó. Convive com o garimpo nas imediações pelo menos desde a década de 80. Nos últimos anos, as crateras chegaram muito perto da comunidade -a pouco mais de 5 km em linha reta.
A exploração ocorre em diferentes pontos: na beira de estrada, como é o caso do garimpo Paraíba; em região de difícil acesso, que demanda veículo traçado, como é o caso do garimpo Maria Bonita, que remonta aos anos 80; e em garimpos do outro lado do rio Fresco.
Grupos de indígenas tentam ter controle sobre o que é extraído por invasores, e também participação no minério, com tentativa de retenção de 10% do que é retirado.
O ouro e o mogno dos kayapós deram contribuição decisiva para a existência de cidades que orbitam em torno da terra indígena, como Ourilândia do Norte (PA), perto de Turedjam, e Cumaru do Norte (PA), perto de Gorotire.
Mas nada se compara ao que ocorreu ao longo dos anos do governo Jair Bolsonaro (PL). O discurso do presidente a favor da mineração em terras indígenas, a ausência de fiscalização e o apagão da presença da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) no território fizeram a exploração de ouro explodir.
Dados de monitoramento do MapBiomas, uma rede formada por ONGs, universidades e empresas de tecnologia, mostram que os garimpos na terra kayapó somaram uma área de 11,5 mil hectares em 2021. Em 2018, ano da eleição de Bolsonaro, essa área era de 6.300 hectares.
Levando em conta a extensão da devastação, a TI Kayapó é o território tradicional com mais exploração ilegal de ouro no Brasil. Na TI Yanomami, para a qual o governo Lula (PT) declarou estado de emergência em saúde pública, os garimpos ocupavam 1.500 hectares em 2021, segundo o MapBiomas. Eram 363 hectares em 2018.
Para os yanomamis, o garimpo representou uma crise humanitária como poucas vezes se viu. Houve explosão de casos de malária e de doenças associadas à fome, como desnutrição grave, diarreia aguda e pneumonia.
Além da declaração de emergência em saúde, ainda no primeiro mês de gestão, o governo Lula deu início a uma operação para retirada dos invasores da terra yanomami, a maior do Brasil.
Existe a promessa -ainda sem sinalização de quando será cumprida- de ações dessa magnitude em outras terras indígenas tomadas por garimpos. Já há decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) obrigando a essas desintrusões, ainda no governo Bolsonaro, que desrespeitou a decisão.
Por enquanto, operações esparsas de destruição da logística do garimpo vêm sendo realizadas em diferentes territórios.
A PF (Polícia Federal) e o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) estiveram na TI Kayapó no último dia 12 e destruíram seis escavadeiras, além de motores e veículos. Segundo a polícia, seis garimpos foram fechados. Os policiais e agentes estiveram nas imediações de Turedjam e de mais três aldeias.
A exploração ilegal de ouro é bem mais ampla do que alcançam as ações de fiscalização. O Greenpeace, em sobrevoos feitos em março de 2023, detectou 88 escavadeiras na TI Kayapó.
O governo Lula passou a ser integrado por lideranças jovens dos kayapós. Ô-é Paiakan Kaiapó foi nomeada em março para o cargo de coordenadora da Funai na região que abrange a terra indígena. Maial Paiakan Kaiapó foi nomeada no mês seguinte como assessora da presidente da Funai, Joenia Wapichana.
As duas são filhas de Paulinho Paiakan, umas das lideranças mais expressivas dos kayapós e do movimento indígena em defesa da demarcação de territórios. Ele morreu de Covid-19 em junho de 2020.
Em ações contra o garimpo ilegal, o governo petista precisará adotar estratégias distintas, conforme a realidade de cada um dos territórios.
“Foi o próprio governo, lá atrás, que incentivou essa exploração de garimpo e madeira aqui”, diz Beptum Kayapó, 48, um dos caciques de Gorotire, em referência aos modelos predatórios de ocupação da Amazônia nas décadas de 70 e 80.
A aldeia, em seu núcleo, tem casas de alvenaria que estão abandonadas. Foram construídas na fase áurea de extração de ouro e mogno.
As lideranças de Gorotire contam que a decadência veio na década de 90, com a queda da cotação do preço do ouro. “Em 1995, acabou tudo, ouro e madeira”, afirma Tumre Kayapó, 48, professor da língua original na comunidade.
O mogno é encontrado cada vez mais longe, mas caminhões seguem cruzando a terra indígena carregados de toras de madeira. Os garimpos estão em plena atividade, dos mais próximos aos mais distantes. Há garimpeiros jovens recém-chegados. E outros que já foram e voltaram para a terra kayapó uma infinidade de vezes.
O maranhense Zé, 55, vive num barraco de lona ao lado de uma grota de garimpo no território. Ele trabalhou no mesmo lugar na década de 80, antes mesmo da demarcação da área. “Isso aqui é um serviço escravo”, diz. “Antes não tinha escavadeira, não tinha motor potente assim. Mas tinha mais ouro.”
Segundo lideranças de Gorotire, há garimpos no território que estão se exaurindo, tamanha a exploração ao longo de 40 anos–com tração sem precedentes nos últimos quatro.
Krãkênhti Kayapó é um dos mais velhos de Gorotire. Ele resume o sentimento entre as lideranças da aldeia, que é considerada a maior do sul do Pará. “Não somos nós que temos de proibir tirar ouro e madeira. É o governo que falou que proibiu, que fez esse compromisso. Se proibiu, é preciso dar uma alternativa, com mais recursos para a comunidade.”
Os kayapós recebem benefícios como Bolsa Família ou aposentadoria. E se veem sem oportunidade para atividades tradicionais em aldeias coladas a garimpos.
“O futuro é plantar cacau, açaí, banana e mandioca”, planeja João Kayapó para sua comunidade. “É preciso varrer as casas para construir uma nova vida.”
A grande maioria das 55 aldeias da TI Kayapó se opõe ao garimpo ilegal –a atividade predatória existe em, pelo menos, cinco aldeias, incluída a aldeia-mãe. Onde há combate a garimpo, inclusive com bases de proteção, há atividades econômicas como cultivo de cacau, coleta de castanha e pesca esportiva.
Agora, diante de um cenário político novo, os kayapós ensaiam novo afastamento da exploração ilegal de ouro e de madeira.
“Tenho ouvido falar muito sobre crédito de carbono. É muito melhor preservar. Preserva até nossa cultura”, afirma o cacique de Turedjam.
Em Gorotire, a entrada no mercado de crédito de carbono –em que os indígenas são remunerados por preservarem a floresta– também passou a ser um discurso recorrente. As aldeias estão sendo consultadas para assinatura de um contrato do tipo com a empresa Carbonext, conforme relatos das lideranças.
Os kayapós também querem recursos do Fundo Amazônia, reabilitado no governo Lula após desmonte na gestão passada por razões ideológicas.
“A gente quer vender crédito de carbono, para manter todos os parentes. Muitos não têm renda”, diz Poy Kayapó, 45, presidente da Associação Mebengôkre Angrokrere, que representa 32 aldeias, Gorotire entre elas. “Se a gente conseguir, garimpo fecha.”