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Story Publication logo March 7, 2023

Mortes após o parto deixam rastro de luto nas famílias e expõem falhas na assistência

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A pregnant person holds their swollen womb
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Cláudia Collucci investigates Brazil's struggling health care system and the tragedy of maternal...

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Histórias ajudam a explicar a razão pela qual o Brasil dobrou a taxa de mortalidade materna durante a pandemia.


BELÉM, Pará, Brasil—Áurea Monteiro, 28, morreu às 15h45 de 31 de março de 2021 na UTI da Santa Casa de Belém, no Pará. Cinco horas depois, morria Dienne Santos, 38, em uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) a sete quilômetros dali. Ambas tiveram complicações da Covid-19 após o parto, deixaram órfãos os seus bebês e um rastro de luto que persiste nas famílias.

Na capital do estado vizinho, em Boa VistaRoraima, o enfermeiro de saúde indígena Gracione da Silva Santos, 44, ainda chora a morte da mulher Almiza Prado, 37, em junho de 2020, no primeiro ano da pandemia de Covid. Hoje, ele cuida da caçula, Valentina, nascida com a mãe intubada na UTI, e de outros quatro filhos.


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O enfermeiro Gracione da Silva Santos, 42, com seus filhos Pedro, 14, (à esq.) Valentina, 3, Gael, 5, Ayla, 17, Abraaão, 10, e a sobrinha Lys em sua casa em Boa Vista (RR); a mãe das crianças, Almiza Prado, morreu de Covid-19 um mês após o parto da caçula. Imagem por Henrique Santana/Folhapress. Brasil, 2023.

As histórias expõem falhas em serviços de saúde públicos e privados no auge da crise sanitária, ajudam a explicar a razão pela qual o Brasil dobrou a taxa de mortalidade materna em 2021, com a região Norte na liderança, e sinalizam as áreas prioritárias que demandam melhorias para conter óbitos que podem ser evitáveis em 90% das situações.

Vídeo por Folha de S.Paulo. Brasil, 2023.

Dados do programa do governo federal Previne Brasil, extraídos pela Impulso Gov, uma organização sem fins lucrativos, mostram que, em média, 34% dos municípios brasileiros não conseguiram realizar seis consultas de pré-natal para 45% das suas gestantes (meta do programa) em 2022. Na região Norte, essa taxa foi quase o dobro.

O problema já foi duas vezes pior: em dezembro de 2021, 6 em cada 10 municípios estavam nessa situação. "Ainda que o cenário tenha melhorado, estamos falando de pelo menos 1.800 cidades que não conseguiram oferecer o mínimo recomendado de consultas", diz João Abreu, diretor-executivo da Impulso Gov.

A dona de casa Dienne Santos foi uma das gestantes que não fizeram o pré-natal durante a pandemia por medo da Covid, segundo a sogra Antonia Eremita Santos, 60, de Belém (PA). Ela começou a sentir os sintomas da infecção sete dias após o parto de Giovanni, em 14 de março de 2021.

Com muita tosse, procurou uma UPA em Belém, foi medicada e liberada. Na mesma noite, com febre alta e falta de ar, voltou à unidade de saúde. Sem vaga na UTI, foi internada e logo depois intubada ali mesmo. Morreu na UPA, após dez dias, deixando o marido, o bebê e duas meninas de 6 e 9 anos.

"Ela saiu daqui andando, conversando. Quando a gente ia imaginar que ela não voltaria mais? Que ela só sairia de lá direto para o cemitério. Naquela época, ninguém via o corpo, ninguém fazia velório, ninguém fazia nada", diz Antonia, emocionada.

Imagem por Folha de S.Paulo.
Imagem por Folha de S.Paulo.
Imagem por Folha de S.Paulo.
Imagem por Folha de S.Paulo.

De acordo com o OOBr (Observatório Obstétrico Brasileiro), as puérperas hospitalizadas pela Covid tiveram 2,5% mais chances de morrer por complicações da infecção em comparação às gestantes.

"No puerpério [período até 42 dias após o parto], a mulher tem um risco maior para trombose, e a Covid-19 também predispõe à trombose. A cesariana já leva a uma resposta inflamatória e ela pode ser potencializada pela Covid-19", explica a obstetra Rossana Pulcineli Francisco, professora da USP e coordenadora do OOBr.

Outro fator, acrescenta a médica, foi a dificuldade que as gestantes e puérperas tiveram para ter acesso a uma UTI durante a pandemia: 22% delas morreram longe da terapia intensiva e um terço não chegou a ser intubada. "Dizer que uma mulher morreu sem ter acesso a uma UTI deixa claro que assistência médica falhou no atendimento a essa mulher.

"Pará registrou uma razão de mortalidade de 117,6 mortes por 100 mil nascidos vivos em 2021, acima da média brasileira, de 110 mortes por 100 mil.

"Dizer que uma mulher morreu sem ter acesso a uma UTI deixa claro que assistência médica falhou no atendimento a essa mulher."

Rossana Pulcineli Francisco, obstetra, professora da USP e coordenadora do OOBr

Segundo Milena Ferreira Porfírio, coordenadora da área da saúde da criança da Secretaria Municipal da Saúde de Belém, a alta da mortalidade materna esteve relacionada ao fato de que várias ações maternoinfantis foram paralisadas, e os esforços, direcionados para o enfrentamento da Covid.

Mas mesmo com o arrefecimento da pandemia ainda há várias barreiras a serem vencidas, como a falta de médicos e a rotatividade de profissionais, que acabam prejudicando o vínculo com as pacientes e uma não adesão ao pré-natal.

A dificuldade de acesso a leitos obstétricos também persiste e tem sido discutida com o governo estadual, responsável pelo atendimento hospitalar de alta complexidade. "É preciso uma vinculação entre a atenção básica e a maternidade onde a gestante terá o bebê para evitar a peregrinação na hora do parto, outra causa que aumenta o risco de mortalidade da mãe ou do bebê", diz Porfírio.

Em nota, a Secretaria da Saúde do Pará atribui a alta das mortes maternas na pandemia à desestruturação da atenção primária. Diz que o estado reorganizou e fortaleceu, nos 144 municípios, o processo de trabalho nos três níveis de assistência maternoinfantil, desde o programa de pré-natal até os hospitais de média e alta complexidade.

A pasta afirma ainda que o Pará apresentou em 2022 uma redução de 46% da mortalidade materna em relação a 2021.


A estudante Claudia Azevedo Santos, 32, sente saudade da cunhada de Áurea, que morreu logo após o parto de Elisa, 2. Imagem por Henrique Santana/Folhapress. Brasil, 2023.

Gerente de uma lanchonete em Belém, Áurea Monteiro tinha plano de saúde e iniciou o pré-natal na rede privada no quinto mês de gestação, quando descobriu a gravidez. No início de março de 2021, teve sintomas gripais e ligou para o teleatendimento do plano, que a tranquilizou, orientando-a permanecer em casa.

Naquele período, o estado do Pará acumulava mais de 9.000 mortes desde o início da pandemia e quase 383 mil casos. No dia 13 daquele mês, o governador Helder Barbalho (MDB) anunciou lockdown de sete dias para a região metropolitana de Belém.

Em casa, Áurea foi piorando. Apresentava febre alta, calafrios e um pouco de falta de ar. Preocupado, João Carlos, o marido, a levou para fazer um teste rápido na farmácia, que atestou a Covid.

A mulher foi internada e submetida a uma cesárea de emergência. No dia seguinte, foi levada para UTI, intubada, e morreu uma semana depois.

"Foram dias desesperadores. Meu irmão só chorava. A gente vê as reportagens que a Covid levou pai, mãe, mas é muito difícil quando acontece com alguém próximo. A gente não aceita", diz a cunhada Claudia Helena Azevedo Santos, 36, que amamentou a sobrinha Elisa, 2, durante dois meses.

A 7,5 km dali, Antônia lamenta a ausência de Dienne, a nora que ela considerava uma filha. "Ela estava sempre brincando, alegre. Adorava confeitar os bolos que eu fazia. Éramos muito ligadas. Como se conformar?", indaga.

Após a morte de Dienne, Carlos, o marido, mudou-se para Santa Catarina com os filhos. "Ele sofreu muito, chegou a perder mais de 20 quilos. Tento dar força, digo que ele não é o único que perdeu a mulher, mas não é fácil, eu sei."

Carlos e a mulher estavam juntos havia 14 anos.


A aposentada Antônia Eremita de Sousa Santos, 60, de Belém (PA), acompanhou a piora e a morte da nora Dienne que contraiu Covid após o parto e morreu dias depois. Imagem por Henrique Santana/Folhapress. Brasil, 2023.

Quase três anos após a morte da mulher, o enfermeiro Gracione Santos, de Boa Vista (RR), diz que ainda pensa nela todos os dias enquanto cuida dos cinco filhos do casal, com idades entre 3 e 17 anos. Técnica de enfermagem na maternidade Nossa Senhora de Nazareth, Almiza tinha problemas cardíacos e temia muito o coronavírus.

Após o diagnóstico de Covid e com queda na saturação de oxigênio, foi internada e intubada na maternidade, a única do estado que atende gestações de alto risco, mas que não dispõe de UTI obstétrica. Atualmente, também funciona de forma improvisada, em tendas de lona.

Com a piora do quadro, Almiza foi transferida para o HGR (Hospital Geral de Roraima) e submetida a uma cesárea de emergência, antes de completar seis meses de gestação. Porém o hospital não tem UTI neonatal, e Valentina, pesando pouco mais de 1 kg e medindo 38 cm, foi transferida para a maternidade.

O HGR é o único hospital geral do estado. Além de atender os 15 municípios, dá assistência a pacientes vindos da Venezuela e da Guiana, países que fazem fronteira com Roraima. No início da pandemia de Covid, a instituição entrou em colapso.

"Muitas vezes não tínhamos vagas para comportar todo mundo, e tivemos uma alta mortalidade de gestantes, uma clientela que acabou esquecida", conta o infectologista Mario Asato, responsável por uma das UTIs do HGR. Ele também teve Covid em 2021, foi intubado e ficou 28 dias internado.

Com a mulher e filha recém-nascida em estado crítico, Santos se dividia entre os dois hospitais. "Ia de manhã para a maternidade acalentar a Valentina e à tarde para o HGR. Mesmo não podendo estar com a Almiza [intubada na UTI], ficava lá. Até quando pôde, ela dizia: 'Amor, não me deixe só'", conta o enfermeiro.

À noite, ele se dedicava aos quatro filhos. "Eles iam pra minha cama e rezávamos para que Deus a curasse. Uma noite pedimos que fosse feita a vontade dele. No dia seguinte, entrei na UTI e falei pra Almiza: 'Eu te amo e vou te amar para o resto da minha vida, mas, se você precisa ir, pode ir. Eu serei um bom pai para os nossos filhos'."

"Entrei na UTI e falei pra Almiza: 'Eu te amo e vou te amar para o resto da minha vida, mas, se você precisa ir, pode ir. Eu serei um bom pai para os nossos filhos"

Gracione Santos, marido de Almiza, que morreu de Covid-19

A mulher morreu naquela noite, após 36 dias na UTI. Valentina saiu da maternidade um mês e 24 dias depois do nascimento –foram 54 dias na UTI.

Roraima liderou o ranking da mortalidade materna em 2021, com 281,7 óbitos por 100 mil nascidos vivos, patamar semelhante ao de países africanos.

Gargalos da assistência obstétrica no Norte

Em nota, a Secretaria de Saúde de Roraima afirma que vem registrando um aumento substancial nas demandas de atendimento em todas as unidades, entre as quais o Nossa Senhora de Nazareth.

Segundo a pasta, tem sido adotada uma série de medidas para melhorar o atendimento na maternidade, como o treinamento de profissionais, contratação de servidores e avaliação de indicadores.

A secretaria diz ainda que o principal desafio nessa unidade é assegurar o atendimento a gestantes provenientes da Venezuela. Muitas delas, continua a pasta, chegam sem o acompanhamento do pré-natal e com quadro clínico de alto risco.

Após a perda da companheira de 15 anos, Santos tentava administrar a própria dor, os cuidados com uma recém-nascida prematura, a tristeza dos demais filhos, e as dificuldades financeiras causadas pela perda de renda.

Em 2021, o luto da mulher se somou aos da mãe e do pai. Ambos morreram por complicações da Covid. "Eu fiquei devastado, mas pensava: 'eu tive a minha mãe. E a Valentina, que nem teve a oportunidade de conviver com a mãe dela? E os meninos que tiveram tão pouco tempo com ela?'"

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